Caso Dhemis Augusto: o tiro que atravessou a baliza racial

Artigo de especialistas aponta que caso do vigia Dhemis, assassinado em Palmas, pode ser qualificado como racismo pela nova lei, tornando-o crime inafiançável e imprescritível

Crédito: Reprodução/Instagram

Na noite de 29 de novembro de 2025, em um shopping da quadra 203 Sul, área nobre de Palmas (TO), o vigia Dhemis Augusto Santos, de 35 anos, saiu para trabalhar como em qualquer outro plantão. Migrante, homem negro e vindo do Nordeste, ele havia se mudado para a capital tocantinense há cerca de um ano, em busca de emprego e de uma vida minimamente estável. Trabalhava como empregado terceirizado, morava em uma kitnet e fazia planos simples e poderosos: tirar carteira de habilitação, comprar um carro, comprar uma casa.

 

Naquela noite, o que separava Dhemis de um cliente era uma baliza de estacionamento. Um obstáculo de trânsito banal. Segundo a Polícia Militar e o boletim de ocorrência, o motorista Waldecir José de Lima Júnior, 40 anos, dirigia uma Range Rover Evoque 2015, carro de luxo avaliado em torno de R$ 130 mil. Ele bateu na baliza sinalizadora ao estacionar, foi advertido pelo vigia e reagiu com fúria mortal.

 

As imagens das câmeras de segurança, que já correram o país, mostram a sequência: Waldecir se aproxima de camiseta escura, saca da cintura uma pistola calibre 9 mm, encosta a arma no rosto/pescoço de Dhemis, gesticula, discute. O vigia tenta, instintivamente, desviar o cano para cima. Em seguida, o disparo à queima-roupa, na região do abdômen. Mesmo com o trabalhador caído ao chão, o atirador ainda mantém a arma apontada e faz novas ameaças antes de fugir.

 

Dhemis ainda foi socorrido pelo SAMU e levado ao Hospital Geral de Palmas, mas não resistiu. Enquanto isso, o carro usado na fuga foi encontrado na garagem da residência de Waldecir, coberto por uma lona. Dentro da casa, a polícia apreendeu munições e carregador de pistola 9 mm. O suspeito, que possui registro de CAC (Colecionador, Atirador Desportivo e Caçador) e já foi condenado, em 2013, por porte ilegal de arma de fogo, segue foragido. Estamos diante de um “homem de bem”, desses que defendem o direito de que todos andem armados.

 

A narrativa policial fala em “discussão banal por estacionamento irregular” e “motivo fútil”. Tudo isso é verdade. Mas é incompleto. O que matou Dhemis não foi apenas a vaidade ferida de um homem armado ao volante de um carro de luxo. O que matou Dhemis foi o racismo estrutural brasileiro, acionado ali, em fração de segundos, no corpo de um trabalhador negro desarmado — ainda que nenhuma palavra de ódio racial tenha sido registrada em áudio.

 

O que é racismo estrutural?

Racismo não é apenas o xingamento explícito, a injúria gritada, o “você não vai entrar aqui porque é negro”. Ele é a forma como o racismo se organiza nas instituições, nas rotinas, nas hierarquias sociais e econômicas, produzindo um padrão reiterado: negros nas posições mais vulneráveis; brancos (ou pessoas em posição de privilégio racial) ocupando o lugar do comando, da propriedade, da força simbólica e, muitas vezes, da força armada.

 

Ele se expressa, por exemplo, na composição racial das prisões e das vítimas de homicídio e na naturalização de quem pode ocupar o lugar de “cliente importante” e quem deve ser apenas “o subalterno que não pode repreender”.

 

No Brasil, os dados de violência letal mostram que a imensa maioria das vítimas de homicídio, quase 80%, é negra; ano após ano, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública e estudos do Ipea confirmam essa tragédia estatística.

 

Em outras palavras: quando um homem negro trabalhador morre “por nada” — por causa de uma vaga de estacionamento, de uma discussão de trânsito, de um olhar considerado “desrespeitoso” —, ele não morre sozinho. Ele morre dentro de uma engrenagem que já decidiu, há séculos, quais vidas têm direito a hesitação, diálogo, desculpas, e quais vidas podem ser atravessadas por um tiro porque “passaram do limite”.

 

A baliza, o carro de luxo e o corpo negro

No caso de Palmas, os elementos simbólicos falam alto:

 

- um shopping de área nobre, espaço de consumo, prestígio e distinção social; 

- um carro de luxo importado, Range Rover Evoque, dirigindo-se por alguém com registro de CAC e histórico de problemas com armas; 

- um vigia terceirizado, migrante, trabalhador da base da pirâmide de serviços urbanos; 

 

Dhemis fazia o que o contrato de trabalho e o regulamento do shopping mandavam: proteger o patrimônio, organizar o fluxo, pedir respeito às regras comuns do estacionamento. A reação do motorista — sacar arma, encostar no rosto e no corpo de um trabalhador desarmado, disparar e seguir ameaçando — é um retrato da sensação de poder absoluto que certos corpos sentem sobre outros.

 

Essa assimetria não se explica apenas por “gênio forte” ou “surto”, como a defesa tenta sustentar. Ela se explica por uma cultura na qual o corpo negro, especialmente quando veste uniforme de serviço, é visto como substituível, descartável e menos digno de respeito. Se o vigia fosse um homem branco de classe média, é plausível imaginar que o desfecho seria o mesmo? A pergunta é incômoda — e justamente por isso é necessária.

 

A chave de interpretativa do art. 20-C da Lei de Crimes Raciais

Desde a Lei nº 14.532/2023, que alterou a Lei nº 7.716/1989 (Lei de Crimes Raciais), passou a vigorar o art. 20-C, com a seguinte redação:

 

“Art. 20-C. Na interpretação desta Lei, o juiz deve considerar como discriminatória qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou a grupos minoritários que cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, e que usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência.”

 

Esse dispositivo é revolucionário porque manda olhar para o contexto e para a assimetria de tratamento, e não apenas para a presença de xingamentos abertamente racistas.

 

No caso de Palmas, temos um homem negro em posição subalterna, cumprindo uma regra simples de trânsito; um homem armado, em posição de privilégio econômico, que reage com violência letal a uma advertência funcional e; uma escalada de agressividade completamente desproporcional ao conflito objetivo (uma baliza derrubada, um estacionamento irregular).

 

Pergunta-se: esse tipo de reação — arma no rosto, disparo à queima-roupa, ameaças mesmo após a vítima cair — é o tratamento que normalmente se dispensaria a um trabalhador se não houvesse, ali, a intersecção entre raça, classe e função social desempenhada?

 

À luz do art. 20-C, o Judiciário tem o dever de investigar se essa conduta não é, precisamente, uma forma de discriminação racial indireta, produzida pelo racismo estrutural, ainda que o agressor jamais tenha pronunciado um xingamento racial.

 

Da “briga banal” ao crime imprescritível

A Constituição Federal, em seu art. 5º, XLII, é cristalina:

 

“a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”.

 

Quando o racismo é entendido apenas como ofensa verbal ou recusa explícita de atendimento, casos como o de Dhemis são tratados como “simples homicídio por motivo fútil”, que prescreve e admite fiança em determinadas fases.

 

Mas se assumimos seriamente a noção de racismo estrutural e aplicamos o art. 20-C, abre-se uma outra possibilidade jurídica: a de reconhecer que, naquele estacionamento, o que se expressou foi uma forma extrema de racismo — um racismo que decide que o corpo negro que ousa confrontar o privilégio de um homem armado e motorizado pode ser eliminado.

 

Sustento, portanto, que há base normativa para que o Ministério Público e o Judiciário qualifiquem o caso como crime de racismo em sua dimensão estrutural e institucional, não apenas como homicídio motivado por “briga de trânsito”. Isso não exclui a tipificação de homicídio qualificado, mas exige que se investigue e se reconheça a motivação discriminatória na raiz do ato.

 

Reconhecido o caráter racista do crime, aplicam-se as consequências do art. 5º, XLII: inafiançabilidade e imprescritibilidade. Em termos concretos, isso significa:

- não é cabível fiança para afastar a custódia cautelar;

- o Estado não poderá se omitir até que o tempo apague a possibilidade de punição — o dever de responsabilizar é permanente.

 

A Convenção Interamericana contra o Racismo e o dever do Estado brasileiro

Desde o Decreto nº 10.932/2022, o Brasil promulgou a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, que foi aprovada pelo Congresso com status de emenda constitucional.

 

A Convenção reconhece o racismo institucional e estrutural e obriga os Estados a prevenirem, investigarem, punirem e repararem atos de discriminação racial, inclusive quando praticados por particulares.

 

Além disso, ela introduz conceitos de discriminação indireta, múltipla ou agravada, alinhando-se exatamente à lógica do art. 20-C da Lei de Crimes Raciais. 

 

À luz da Convenção, o caso de Dhemis Augusto não é um “episódio isolado” a ser confiado à estatística. Ele é um teste para o compromisso do Brasil com o enfrentamento real do racismo.

 

Aplicar a Convenção significa:

 

- reconhecer que o Estado não pode se contentar com a narrativa da “briga banal”;

- incorporar, na investigação e na denúncia, a dimensão racial e estrutural do conflito;

- garantir à família e à comunidade de Dhemis não apenas a punição do autor, mas o reconhecimento público de que a morte de um trabalhador negro em circunstâncias tão desproporcionais é também um crime contra a igualdade racial.

 

Nomear o racismo para proteger a vida

Dizer que Dhemis morreu por racismo estrutural não é um exercício retórico. É uma forma de rasgar o véu da “normalidade” que cerca homicídios de trabalhadores negros, principalmente quando confrontam, mesmo educadamente, símbolos de poder econômico e bélico.

 

Se o sistema de Justiça tratar esse caso como mais um homicídio motivado por “motivo fútil”, estará, na prática, reafirmando a mensagem de que o racismo estrutural pode continuar operando em silêncio, sem nome, sem consequência constitucional.

 

Se, ao contrário, reconhecer a dimensão racista do crime, aplicando o art. 20-C, a cláusula do art. 5º, XLII da Constituição e os comandos da Convenção Interamericana contra o Racismo, o Estado brasileiro dará um recado diferente: a vida de um vigia negro em Palmas vale tanto quanto a de qualquer outro cidadão, e sua morte não será apagada pelo tempo nem pela desculpa de uma “discussão por baliza”.

 

Dhemis não pode voltar. Mas podemos decidir se sua morte será mais um número em estatísticas silenciosas ou um marco na afirmação de que, neste país, o racismo — inclusive quando veste roupa de “futilidade” — é inaceitável, inafiançável e imprescritível.

 

Por: Márlon Reis, advogado, pós-doutor em Direito pela UFBA e Paulo Mello, advogado, assistente de acusação no caso de Dhemis.

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