Coisa de preto

Adriano Castorino escreve o editorial "Coisa de Preto" pelo Dia da Consciência Negra

“Preto é assim, quando não caga na entrada, caga na saída”. “Esse serviço ruim só podia ser feito por um preto”. Essas duas frases eu sempre escutei. Sempre. Escutava também na escola: “beiço de jumento, beiço de gamela”. A recente divulgação do vídeo em que o jornalista da TV Globo xinga uma pessoa que buzina dizendo que isso só poderia ser coisa de preto revela o óbvio. Sim, há um imenso racismo tanto latente quanto aparente. Ali Kamel, chefe deste jornalista escreveu um livreto no qual diz que no Brasil, nós, como sociedade, não somos racistas. Pelo jeito, ele não prestou atenção no seu local de trabalho.

 

Um dia desses, a Ministra dos direitos humanos escreve uma missiva ao gabinete da presidência da república pedindo para acumular dois vencimentos. Nada soaria mais bizarro neste pedido, por si só um absurdo, mas eis que a ministra se diz escravizada. Isso é uma prova incontestável de como parte da classe média (ministras/os e jornalistas da TV Globo, prefeitos de grandes capitais, empresários/as) além de racistas relativizam a escravidão.

 

A fala desse jornalista, para piorar, não é uma coisa isolada. No vídeo ele fala em tom muito zombeteiro, gozador, frívolo. É racista desde sempre. O pressuposto na fala dele é que ser preto é ser mesmo um pária. Não nos esqueçamos que este e um tanto de outros/as jornalistas da TV Globo foram e são visceralmente contra as políticas de cotas para negros, tanto em universidade quanto em concursos públicos.

 

Lázaro Ramos, um ator negro, homem negro, intelectual negro, escreveu um livro, Na minha pele, em que perpassa um pouco de sua história, sempre anotando como é se sentir negro, como é sentir na pele que se é negro. Por isso, sobretudo por isso, a luta pela afirmação étnica, racial é uma daquelas lutas que jamais poderemos desistir. A ferida da escravidão, a ferida do racismo ainda está aberta.

 

A fala desse jornalista em nada difere das falas dos capatazes dos donos de engenho que escravizam a mão de obra no período colonial. É como se a história da escravidão sempre tivesse batendo em nossa porta. A gente precisa ter coragem para falar abertamente sobre racismo, sobre escravidão. Tolerar frases como esta, tolerar a escravidão ainda hoje praticada é uma contradição tão grande que não podemos aceitar. Temos de ter coragem para punir severamente todo tipo de racismo, qualquer racista.

 

Este jornalista já foi suspenso, como medida rápida. Mas isso não basta, por que a fala dele, embora seja de autoria dele, como se vê no vídeo, mas não representa apenas uma opinião isolada. A gente vê torcidas de futebol chamando jogadores negros de macacos. A gente vê pastores, como Marco Feliciano, dizer que os africanos (quase toda a África é negra) são amaldiçoados.

 

Eu penso na história de Damião, no livro Os tambores de São Luis, uma personagem que revela muito como a história do Brasil tratou e trata os negros. Penso na música Negro Drama, dos Racionais MCs, que mostra como favela é a representação da imensa segregação étnica e racial. Esse episódio mostra como estamos longe de resolver nosso drama colonial.  Nem preciso dizer aqui como a situação carcerária representa de modo cruel o resultado de tanto racismo, como regra social.

 

Adriano Castorino é técnico em assuntos educacionais, professor, doutorando em ciências sociais/antropologia

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