De todos os eventos históricos importantes que ocorreram na segunda metade do século XIX no Brasil, a Abolição da Escravatura ocupa uma posição de centralidade. Tais eventos concorreram para permitir que o país se industrializasse e experimentasse um novo patamar na divisão internacional do trabalho, preparando-o para se destacar no cenário regional da América Latina. Pela ótica do mercado, era fundamental se abolir a escravatura e preparar a mão-de-obra para a experiência do trabalho livre e assalariado, o que permitiria que o grande contingente de negros no Brasil participasse das relações de mercado como consumidores de produtos importados e nacionais.
Por estes termos, se entende que não houve projeto de “humanidade” na Abolição da Escravatura; tudo não passou de um ajuste de mercado. E um ajuste tão cruel que, antes mesmo da abolição ser promulgada, em 13 de maio de 1888, foi homologada uma Lei de Terras, em 1850, assegurando que as terras existentes nos territórios articulados pelas relações de mercado nacional seriam tituladas à elite produtora do país. E à medida que a fronteira econômica fosse avançando no território nacional, as terras devolutas articuladas seriam concedidas pelo Estado mediante o seu interesse e por regras a serem estabelecidas.
Obviamente, essa situação limitou o destino dos escravizados recém libertos... Muitos se viram forçados a permanecer nas mesmas fazendas, para agora trabalharem mediante salários. Outros migraram para as cidades, onde ocuparam informalmente a periferia, os morros e as encostas. E houve ainda os que avançaram para o sertão, buscando lugares onde poderiam reproduzir a vida longe das relações que os excluíam e marginalizavam.
A instituição desse processo sedimentou definitivamente no Brasil a desigualdade social mediante a cor da pele. E mesmo com forte campanha de “cientistas” (antropólogos, sociólogos, historiadores) que, na passagem do século XIX para o século XX, advogavam haver no país uma “democracia racial” – especialmente em comparação com a discriminação racial existente nos EUA –, a realidade social brasileira sempre deixou muito evidente a sua estratificação piramidal. Dessa forma, no final do século XX e início do século XXI uma das principais pautas que se apresentam às políticas públicas é a de se criar mecanismos efetivos de superação dessa desigualdade. Entretanto, os números de nossa realidade chamam a atenção para o tamanho que ainda é esse desafio...
A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2018 do IBGE revela que o Brasil é sim um dos países mais desiguais em termos de cor da pele, e quando se amplia o foco da lente, percebe-se também que essa desigualdade afeta a questão de gênero. Assim, comecemos a exposição pela desigualdade no rendimento médio de nossa população.
O gráfico 1 revela a desigualdade de renda mensal entre brancos e negros e apresenta uma informação chocante: mesmo nas relações de trabalho informal, esta desigualdade se reproduz. Mas quando se especifica as comparações, trazendo à tona especialmente a questão de gênero, é possível se ter uma melhor noção de como a pirâmide social brasileira está constituída.
O gráfico 2 nos dá uma boa ideia da dimensão da desigualdade social no Brasil. Ele mostra as situações sociais que se opõem, tendo numa ponta, a diferença de rendimentos entre mulheres negras e homens negros. Nessa informação, se percebe que as mulheres negras recebem, em média, 79% do que recebem os homens negros. Porém, na outra ponta, onde figuram as mulheres negras em relação aos homens brancos, as mulheres recebem apenas 44% do que recebem os homens. Mas é importante destacar também que os homens negros recebem apenas 56% do que recebem os homens brancos. Assim, a maior desigualdade no Brasil está entre os homens brancos e as mulheres negras, ou seja, a desigualdade social se amplia quando se incrementa a informação de gênero.
Outra informação de base para se compreender melhor a desigualdade no Brasil diz respeito aos rendimentos em relação ao nível de escolaridade. Mais uma vez, em qualquer nível de instrução os negros receberam menos do que os brancos, como revela o gráfico 3.
Em que pese haver diferença no valor da hora trabalhada entre negros e brancos nos níveis elementares de formação, sempre a favor dos brancos, é mesmo na formação superior que essa desigualdade dispara, quebrando com a ideia de que o diploma de curso superior reduz a desigualdade. Na verdade, a formação superior agrega valor de renda, mas em comparação com os rendimentos de pessoas brancas, a diferença é bastante ampliada.
Diante de tamanha desigualdade, o que a população negra do Brasil tem feito para garantir melhores oportunidades e a superação das assimetrias? Bom, considerando que vivemos numa República democrática em que predomina o sufrágio universal, uma primeira boa ação no sentido da reversão desse quadro seria a eleição de representantes classistas. Contudo, os resultados eleitorais revelam, mais uma vez, a projeção dessa mesma desigualdade no cenário político institucional.
O gráfico 4 indica que apenas 27%, ou seja, pouco mais de ¼ dos deputados estaduais, federais e senadores eleitos em 2018 têm a cor negra. Se agregarmos a essa informação a dos vereadores também, perceberemos que, neste caso, em todo o Brasil apenas 42% dos vereadores eleitos em 2016 são da cor negra. Vale lembrar que a maioria da população brasileira é negra (parda ou preta). Aliás, à medida que se sobe de nível na escala parlamentar, diminui a proporção de negros eleitos: deputados estaduais em 2018, 28%; deputados federais em 2018, 24%.
Num sistema eleitoral tão isento quanto o brasileiro, o que faz com que frente a tamanha desigualdade social por cor de pele a população negra não escolha representantes com a sua própria experiência? A resposta é mais ou menos simples: a dominação ideológica, com dispositivos simbólicos de subjugação introjetados há séculos, e a carência material, a pobreza mesmo, que leva tal população a negociar o voto diante das eleições. O gráfico a seguir mostra, por exemplo, a distribuição dos candidatos a deputado federal em 2018 de acordo com suas receitas de campanha.
É assustador perceber a diferença dos recursos de campanha de acordo com a cor da pele! A que conclusões chegamos diante de tudo isso? Faço aqui alguns apontamentos, considerando inclusive que estamos num ano eleitoral:
-
Para gestores humanistas, é preciso pautar a questão da desigualdade social, especialmente mediante a cor da pele e a situação de gênero, tornando tal preocupação transversal em todas as políticas públicas.
-
Para a população negra, é fundamental construir uma plataforma de reivindicações e eleger lideranças que tenham compromisso com a causa.
-
Para os candidatos de um modo geral, é preciso trazer essa questão para a plataforma discursiva.
________
Adão Francisco de Oliveira é historiador, sociólogo e doutor em Geografia. É professor do Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFT / Porto Nacional e ex-secretário de Educação do Tocantins.
Comentários (0)