Essa de abrir os olhos de manhã ao acordar e agradecer por estar vivo deixou de ser uma bênção. Isso é puro proselitismo político-religioso e máquina de se produzir senhas para a fila da morte. Você não está vivo. Você está morto. A luta, agora, é achegar-se à morte e tentar algum tipo de acordo com ela, que reina absoluta. O problema, no entanto, é achar insumo suficiente para a produção dessas senhas. Está tudo acabando. Aos que ainda não morreram, a chance é desnaturalizar a morte, historicizando-a. Ou seja: nada daquela conversinha de que é tudo natural. Não é. Tem muita treta e maldade no meio.
Em As Intermitências da Morte (Companhia das Letras, 2005), o escritor português José Saramago (1922-2010), nobel de literatura e por quem tenho grande admiração pela obra, nos fala das peripécias da morte que resolve, de uma hora para outra, parar de matar. Com isso, num país parecidíssimo com o Brasil, instala-se o caos na economia, nas relações diplomáticas e institucionais, no serviço de saúde pública, nas condições sanitárias, nas relações sociais, enfim. Ficcional, a obra é um verdadeiro tapa na nossa cara, além de atualíssima. E não se engane: a qualquer momento você pode receber uma carta (isso mesmo que você leu: carta), de cor violeta, indicando que você terá apenas oito dias à frente para o descanso eterno dai-nos Senhor.
Não. Esse texto não é uma resenha do livro. Resenhá-lo demandaria mais tempo e não sei a que horas o carteiro pode entregar minha correspondência. É mesmo uma reflexão. Hoje o Brasil aproxima-se dos 300 mil mortos pela Covid-19, que dilacera famílias, amantes, lares, segredos, prostíbulos, igrejas, aldeias, governos, corruptos, honestos, freiras, padres, brancos, pretos, bichas... e, simplesmente, ninguém se dispõe a achegar-se à morte para um acordo. Medrosos e cagões, nós!
Eu não conheço a morte. Nunca vi a cara dela, ao contrário do saudoso Cazuza que já entoou “senhoras e senhores, trago boas novas... eu vi a cara da morte e ela estava viva, viva!” (Boas Novas, Ideologia,1988). Penso que a dita cuja, aquela que é melhor nem ficar falando o nome, só quer diálogo, sentar, conversar, entendimento. O problema é que, em vida, colocamos na chefia do poder um irresponsável tirano e fascista que já disse: “E daí?”. É exigir demais do escroque. Nem coveiro é! (com todo o respeito aos coveiros e coveiras deste país).
Bem, mas a morte é inteligente. Bolsonaro, também. É presidente constituído, pedacinho por pedacinho, de cada um de nós. De mim. De você. É genoma rastreado, comprovado cientificamente. Pena que o cara não acredita na ciência, apenas executa, cuspindo em quem se aproxima, seu Plano de Governo: matar. Matar pobres, pretos, pretas, LGBTs, indígenas... Ele quer mesmo é “higienizar” essa porra toda na qual se transformou esse país. Mas ainda tem jeito: agendar uma audiência entre a morte e o presidente lacaio. Eles precisam chegar a um acordo, já que a morte, enfurecida, está matando a rodo. Daqui a pouco nem insumos para fabricar contêineres para alojar tantos corpos teremos.
Quem já leu o livro do Saramago (não é spoiler) sabe, no finalzinho, no que se transforma a morte. Eu não falo que corremos o risco de desnaturalizar o fim (?). Falo o contrário. Precisamos é hu-ma-ni-zar a morte, o que significa dizer que ela pode ser algo para além do natural e inexorável. Eu quero a morte viva, com suas responsabilidades e chegando aonde tem que chegar, e não sendo forçada a, arrastada para, obrigada a... dar fim a tanta gente. Não é a morte o que está nos matando. A morte é que está a pedir socorro, a pedir vacina para imunizar-se e defender-se de nós.
A cartografia da ignorância, ignorância entendida aqui como o ato de fazer vista grossa para o óbvio, é fácil desenhar. Temos uma democracia frágil, modos de vida, de pensar e de dizer que nos empurram para uma tela, com míseros caracteres em redes (anti)sociais, e que nos fazem acreditar que estamos la-cran-do. E não estamos. Estamos morrendo por desobedecer a morte, que a cada dia se enfurece. Repito: são quase 300 mil no Brasil e mais de 2,5 milhões de defuntos no mundo.
Pesquisa PNAD Contínua Educação 2019 (última que vi divulgada pelo IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) mostra 11 milhões de brasileiros com 15 anos ou mais que não sabem ler ou escrever no Brasil. Desempregados, somos 14 milhões. Matamos e morremos muito mais do que em outros países – a população LGBTQIA+ (e a não LGBTQIA+) sabe bem do que estou falando. A negra, sem comentários.
Doutores, graduados, pós-graduados e intelectuais temos aos montes também. Os mesmos e mesmas que contribuíram para o caos, regozijando-se dos infelizes iletrados e bebendo de seu próprio azedume moral. Fato é que a morte continua a nos chamar ao diálogo e, ainda, nos recusamos. O projeto de morte do desgoverno Bolsonaro insiste em não largar a gadanha (aquela coisinha parecida com uma foice que puseram na mão da morte, lembra?), impedindo-a de seguir o seu curso.
A pulsão sexual dos bolsonaros pelas armas é algo de fazer morrer, suponho. É gozo macabro. Não precisa estudar psicanálise para perceber isso. São sujeitos que necessitam de uma fronteira bélica para atirar, sumir com, esconder ali, corromper acolá. É prática dos covardes, é o modus operandi, é o status quo miliciano. Ocorre que a morte precisa de sossego para fazer morrer, pois é o ofício dela. Eu não sei qual é o melhor caminho. E não quero saber. Mas sei qual não o é. Você também sabe. Não se faça de desentendido ou desentendida!
Nosso sarcasmo, crueldade, ódio, precisam acalmar os ânimos – já expurgamos o bastante por ora. As portas egoicas de nossa individualização precisam enferrujar para não lhes caberem mais antigos ferrolhos. Outros tempos. Até a morte sabe disso. A morte está nua a nos chamar. E, medíocres que somos, preferimos orar pelas almas. Precisamos, mesmo, é deixar a morte deitar, descansar... e dormir, em paz e a seu tempo. Para acordarmos.
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