Encontra-se em tramitação na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 8045/2010, também conhecido como “Novo Código de Processo Penal”. Como o próprio nome indica, este novo código prevê sensíveis e múltiplas mudanças na persecução penal no Brasil, desde a fase de Inquérito Policial, passando pela fase de produção de provas perante o juiz e adentrando os tipos e hipóteses de recursos cabíveis em um processo criminal.
Ocorre que a pretexto de inovar, modernizar, e principalmente, “acelerar” o curso dos processos, o referido projeto de lei traz disposições que despejam perniciosidades na justiça brasileira e, em tragédia anunciada, ameaçam consolidar nosso país como uma distopia regida pela impunidade e sitiada pela insegurança.
É neste viés que se constata que os principais ataques ao senso de justiça promovidos pelo “novo código” se dão, sem dúvida, nas modificações prometidas ao rito de julgamento dos crimes dolosos contra a vida, que como é cediço, são analisados e julgados pelo Tribunal do Júri.
Como exemplo, extirpa do rito do julgamento dos crimes contra a vida a sua primeira fase, também conhecida como sumário da culpa, na qual o juiz togado realiza uma análise prévia e filtra quais casos contam com provas suficientes para submissão ao julgamento pelo corpo de jurados. Apresentando-se com um sorriso largo e argumentando que tal mudança promoverá celeridade, o “novo código” parece bipolar ao sacramentar em outro ponto de seu texto o aumento do prazo para apresentar defesa, que no diploma atual é de 10 (dez) dias, para 45 (quarenta e cinco) dias, sem qualquer justificativa plausível.
A pretexto de trazer maior segurança jurídica e fidedignidade das decisões, estipula o novo código um sistema de votação dividido em fases, de ampla complexidade e que exige em alguns pontos, pasme: discussão entre jurados e obrigatoriedade de veredicto unânime. Tais modificações retiram do jurado suas garantias mais preciosas em um julgamento: sua soberania – se há debates para definir veredictos, como definir se não houve pressão entre os votantes?; e o sigilo de suas decisões – se há unanimidade, sabe-se como cada um votou! Ah, a ironia: votamos soberanamente e sigilosamente nos parlamentares que lá estão, para que eles mesmos nos subtraiam as garantias de sigilo e soberania previstas constitucionalmente!
Porém, tal como nas letras da sabedoria popular, “não há nada tão ruim que não possa piorar”. O golpe de misericórdia na justiça criminal brasileira no tocante aos crimes de sangue, que de misericordioso não tem absolutamente nada, é a vedação que traz o “novo código” à apresentação aos jurados, por parte da acusação e defesa, das provas colhidas na fase do Inquérito Policial. É dizer: nenhum dos depoimentos de testemunhas colhidos na Delegacia de Polícia, logo após o crime, pode sequer ser mencionado aos jurados, sob pena de ser nulo o julgamento.
Tal modificação já seria demasiadamente vergonhosa sob a perspectiva de que desrespeita e atribui a pecha de desonestidade aos nobres Delegados de Polícia e servidores responsáveis pela investigação criminal. Brada-se dos pomposos gabinetes legislativos de Brasília: A prova produzida por você, Delegado e Servidor Público da Polícia Judiciária, É IMPRESTÁVEL! E como tal, não pode sequer ser apresentada aos jurados para que estes formem seu convencimento. É a presunção de má-fé do servidor público, criação “não tão fresca” tupiniquim.
Mas além de humilhação de servidores públicos, a modificação demonstra outro intento ignóbil: subestimar a inteligência e violar a soberania do jurado, e por via de consequência, o grupo de onde este foi escolhido, qual seja, o de cidadãos brasileiros. Ora, qual mensagem se passa ao povo brasileiro aduzindo-se que a prova produzida pela polícia civil sequer pode ser demonstrada àqueles responsáveis pelo julgamento do crime? Não está, portanto, o cidadão apto a, considerando suas experiências de vida e seu senso de justiça, valorar a prova e tomar suas próprias decisões? A olhos nus, poder-se-ia até mesmo cogitar que tal disposição do novo código possui o escuso intuito de futuramente fundamentar a extinção do júri com base no fato de que suas decisões não são confiáveis. Poder-se-ia…
Na prática, a modificação aqui exposta inviabiliza o julgamento dos crimes dolosos contra a vida. Não se enganem: a impossibilidade de que os depoimentos das testemunhas prestados na fase do inquérito sejam utilizados será interpretada pelos criminosos como legalização de queima de arquivo. Se o depoimento prestado na Delegacia não pode ser utilizado para convencer os julgadores, o que basta ao delinquente fazer? Evitar que ele seja repetido em plenário. As formas para atingir tal desiderato deixo à criatividade do leitor.
Ao redigir estas curtas linhas, a verdade é que este articulista se sente como se em uma peroração altiva na qual se requer a condenação de um criminoso em uma sessão plenária de julgamento do Tribunal do Júri. Dirijo-me à sociedade, pugnando para que se aprofundem na matéria, formem sua convicção e façam ecoar em seu círculo social seu “julgamento” sobre esse importante tema, tal como os jurados, ao decidirem sobre o crime que lhes é apresentado, bradam aos concidadãos fora das paredes do foro quais são os seus valores e o que é aceitável ou não na vida em comunidade.
Essa é a beleza do Tribunal do Júri. Sete cidadãos, representantes verdadeiros e diretos da soberania popular, definindo os rumos da civilização ao julgar sobre os crimes contra a vida humana. Não permitamos que essa legislação, que no ano de 2021 acelera seu trâmite por motivos ainda não descobertos, desvirtue e inviabilize esse poderoso instrumento de consolidação da democracia e exercício da soberania popular.
Rogério Rodrigo Ferreira Mota
Promotor de Justiça
Coordenador do MPNujuri - Núcleo do Tribunal do Júri do MPTO
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