Dualidade: crianças não podem ir à escola, mas adultos estão nas ruas

Enquanto crianças não podem ir às escolas, os adultos estão nas ruas esquecidos da pandemia. Mais de 1,2 bilhões de crianças, em 193 países, pararam de ir à escola em algum momento de 2020.

No início da pandemia, os adultos adotaram os cuidados considerados necessários para se protegerem e manterem suas famílias a salvo desse vírus. Manter as crianças em casa, para muitos, era condição indispensável para que elas permanecessem saudáveis.

 

Passados alguns meses, no entanto, sem que a pandemia esteja resolvida, eles simplesmente voltaram a participar ativamente de eventos sociais, como campanhas políticas, happy hour em bares e baladas, jantares em restaurantes, reuniões festivas com um grande número de familiares e amigos, confraternizações em chácaras ou sítios, finais de semana em praias, volta ao trabalho sem as medidas de prevenção... As pessoas, aparentemente, se cansaram e decidiram imprimir um ritmo quase normal em sua vida social, incluindo, muitas vezes, as crianças em suas “aventuras”.

 

Assim, não estão dedicando a atenção necessária à real situação das crianças.

 

Mais de 1,2 bilhões de crianças, em 193 países, pararam de ir à escola em algum momento de 2020, como resultado da pandemia do coronavírus. Algumas faltaram umas poucas semanas, enquanto outras não vão às aulas desde março. Para mitigar o impacto, 94% dos países implementaram alguma política de ensino à distância. No entanto, pelo menos 30% dos alunos – cerca de 370 milhões – continuam sem acesso às aulas à distância ou presencial, o que gera uma "emergência educacional global", conforme alertou a UNICEF. Esse contingente infantil menos privilegiado, cuja principal refeição era feita nas escolas, sofrerá também consequências arrasadoras em termos de nutrição e saúde.

No Brasil, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), cerca de 9 milhões de crianças estão sem merenda escolar, após o fechamento das escolas.

 

Esta é apenas uma das consequências. Segundo Margarete Sachs-Israel, Conselheira Regional de Educação da UNICEF, o "fechamento de escolas não apenas impede o aprendizado, mas expõe os menores a riscos, como abuso, trabalho infantil, tráfico de pessoas, doenças, gravidez na adolescência, exploração sexual, desnutrição e deserção".

 

Todos esses problemas geraram um intenso debate sobre quando e como retornar às aulas presenciais. Na Europa, apesar da "segunda onda", a atividade escolar voltou, embora com restrições: grupos menores de alunos, horário limitado, controle de temperatura, máscaras obrigatórias, bancos separados, divisórias entre as mesas e protocolos no recreio são algumas das medidas. Na América Latina, entretanto, são poucos os países que retomaram a modalidade presencial.

 

Especialistas concordam que a reabertura das escolas é urgente. Mary Guinn Delaney, Assessora da UNESCO para Educação, Saúde e Bem-estar expressou-se a respeito do assunto: “Para muitos alunos, a escola é um lugar de acolhimento, de alimentação, de saúde e de aprendizagem. Nem mesmo a melhor tecnologia pode substituir o professor em sala de aula. Já estamos analisando as estimativas das perdas de aprendizagem que as crianças terão”.

 

O equilíbrio parece ser uma das chaves. “Devemos pesar o que é mais prejudicial, o coronavírus ou todas as outras coisas.  Não é uma questão de termos absolutos, é uma questão de relatividade", disse o Dr. Álvaro Galiana, pediatra e infectologista responsável pelo serviço de infectologia do Hospital Pereira Rossell, no Uruguai, um dos primeiros países a retomar as aulas presenciais no mundo. Sobre a experiência em seu país, ele disse: “Originalmente foi proposto o fechamento de escolas porque pensávamos que o coronavírus se comportava como a gripe ou o vírus sincicial respiratório humano, onde as crianças desempenham um papel importante na sua disseminação. Mas aprendemos que não é esse o caso. Em geral, a criança é consequência da infecção do adulto e não a causa”.

 

Essa visão é compartilhada por Joan Ramón Villabi, Diretor da Sociedade Espanhola de Saúde Pública e Administração de Saúde (SESPAS), que disse: “Fechar escolas é uma tragédia social e com potenciais graves consequências futuras para as crianças. Devemos garantir que os contágios sejam minimizados, mas abrir escolas deve ser uma prioridade. Vimos que a transmissão por crianças é muito menor do que acreditávamos com base na dinâmica da gripe”.

 

É preciso ter planos de contingência, preparar pais e professores, saber o que fazer se houver casos, localizar e isolar. Desta forma, pode não ser necessário fechar todas as escolas, mas apenas as afetadas ou somente salas de aula individuais. As experiências do mundo são iluminadoras, com seus sucessos e fracassos. Temos exemplos de países que implementaram estratégias diferentes com resultados diferentes. Vejamos.

 

Uruguai

 

O Uruguai fechou as escolas no dia 16 de março, três dias depois que o Ministério da Saúde Pública declarou as primeiras infecções no país, e no dia 22 de abril, com uma curva quase plana, iniciou a reabertura das primeiras escolas rurais, um processo gradativo que culminou em 29 de junho. “Todas as medidas no Uruguai foram graduais, escalonadas e examinadas. Primeiro começamos as aulas em escolas rurais, escolas em locais amplos e abertos. Quando se constatou que a balança não se movia, as aulas foram retomadas em ambientes fechados e posteriormente em Montevidéu. Foi um processo lento, mas progressivo, com avaliação permanente”, afirmou o Dr. Álvaro Galiana. Quando as salas de aula não permitem dois metros de distância entre os alunos, eles são divididos em grupos e participam em turnos. Os intervalos são escalonados e sem brincadeiras que possibilitem o contato físico entre as crianças. O uso de máscara é obrigatório e as salas de aula são desinfetadas diariamente.

 

Alemanha

 

Os alunos alemães foram os primeiros na Europa a voltar às aulas após o verão. Eles foram divididos em grupos com níveis semelhantes de conhecimento e proibidos de se misturarem. Os professores foram alocados conforme as especificidades dos grupos. O uso de máscaras faciais é obrigatório nos corredores e ao entrar nas salas de aula, mas os alunos podem retirá-las desde que permaneçam em suas carteiras escolares, reposicionadas de modo a permitir o distanciamento físico. As salas de aula foram remodeladas, privilegiando melhor ventilação. As escolas não foram identificadas como causadoras dos novos casos registrados no país.

 

Estados Unidos

 

Nos E.U.A., a estratégia de retorno às aulas foi variada. Alguns estados e distritos fecharam em março, enquanto outros deram a ordem de fechamento apenas em maio. Algumas escolas optaram por retomar as aulas presenciais, outras estão conduzindo todo o ensino remotamente e não poucas implementaram um sistema híbrido de aprendizagem presencial e virtual. Entre as escolas que mantiveram a modalidade presencial, algumas adotaram medidas de contenção com separadores, bancadas com distância de aproximadamente dois metros, controle de temperatura e aulas no espaço externo.

 

Coreia do Sul

 

O retorno foi gradativo e sujeito ao número de casos. Algumas das medidas obrigatórias são controle de temperatura, higienização das mãos, distância social, uso de máscaras e divisórias plásticas nas salas de aula. As aulas presenciais foram autorizadas no dia 19 de outubro. Exceções são feitas conforme o número de infectados nas cidades onde as escolas estejam localizadas.

 

Israel

 

Apesar das instruções de segurança, o distanciamento social falhou em maio e junho. A situação agravou-se quando, numa onda de calor, os alunos deixaram de usar máscaras durante quatro dias e alguns estabelecimentos passaram a usar ar condicionado, sem abrir janelas. Após o fechamento das escolas, o governo adotou um sistema de retorno escalonado, que foi interrompido em setembro, como parte de uma reforma geral. Desde o início de novembro, apenas alunos da primeira à quarta séries estão habilitados ao retorno às aulas presenciais, em grupos de até 18 crianças, com uso obrigatório de máscaras.

 

Espanha

 

Grupos educativos foram formados e não podem se misturar. Existem posições fixas nos refeitórios e no transporte escolar, entre outras medidas. O retorno massivo só se deu no início de setembro, com obrigatoriedade do uso de máscaras para maiores de 6 anos, além da lavagem frequente das mãos e da ventilação das salas de aula. A Espanha vive uma “segunda onda” da pandemia, mas as aulas não foram interrompidas e apenas as turmas em que surge um caso são isoladas. As escolas não são consideradas ambientes de disseminação, de acordo com especialistas.

 

Suécia

 

Martin Kulldorff, epidemiologista sueco especializado em doenças infecciosas e professor da Universidade de Harvard, defende uma abordagem com distinção “por idade”. Ele é a favor da reabertura das escolas e contra confinamentos gerais, os quais, segundo ele, ao contrário do que se costuma pensar, representam "o maior assalto às condições de vida da classe trabalhadora em décadas". Não há razões científicas ou de saúde pública para manter as pessoas confinadas e as escolas fechadas. Na Suécia, as aulas ocorrem de forma normal. Se a criança apresenta sintomas, como tosse, nariz entupido ou outro, é encaminhada direto para casa, com a recomendação de permanecer em casa.

 

Discussão

 

Em situações de desigualdades sociais, uma coisa é suspender as aulas da classe média-alta, onde os pais são funcionários públicos ou de empresas que pararam de trabalhar; outra coisa é suspender as aulas das classes mais empobrecidas.

 

O COVID-19 não pode ser pensado somente a partir dele mesmo, mas das condições em que o país se encontra em termos de desigualdades. Não devem ser feitas medidas para o COVID-19 como se a doença existisse em si mesma, sem pensar nas demais problemáticas vivenciadas na sociedade.

 

No caso de crianças cujos pais não conseguem acompanhar o ensino à distância, existe eficiência deste método?

 

Como pensar o COVID-19 em relação a crianças que têm a sua principal refeição na merenda escolar?

 

É preciso pensar o COVID-19 não apenas do ponto de vista de como resolvê-lo, mas como fazer seu enfrentamento com diferentes realidades sociais, que não podem ser desconsideradas.

 

Em 2021, deverão ser definidas no Brasil: a data de retorno às aulas, a estratégia a ser seguida e as normas específicas de segurança das escolas durante a pandemia do COVID-19.

 

Dr. Andrés G. Sánchez

CRM-TO 2290

Cardiologista RQE 991

Hemodinâmica RQE 1.001

MBA Gestão em Saúde FGV

Comitê de COVID do CRM-TO

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