Eu não preciso votar

Acho uma sacanagem ter que votar. Sério mesmo. Em pleno domingão, podendo fazer um monte de outras coisas que gosto, com pessoas que eu gosto, com papos que eu possa opinar, divergir, argumentar, concordar, ou simplesmente ficar em casa de pernas pra cima, eu tenha que fazer isso. Sério mesmo. Eu não dependo disso para ser feliz. Muito menos para me tornar uma pessoa melhor. Não acho isso prova de patriotismo, nem de civismo, e nem de qualquer outro “ismo”. Acho foda mesmo.

 

A tristeza no meu domingão já começa quando abro os olhos. Segue durante o café, o banho, a escolha da roupa para ir votar, a impaciência para dirigir até a seção e gastar minha gasolina, cara pra caramba. As ruas da cidade que parecem cortejo funeral. A revolta na cara das pessoas naquela fila insossa. Aquele mesário pegando meu polegar pra encaixar direito naquela leitora, e que me faz sentir um marginal.

 

Preciso de muita coisa pra viver. Da minha família. De amigos que não sejam pegajosos. De gente inteligente, ou não. De sexo com certa frequência. Do meu salário a cada mês. Do meu galão de água mineral a cada semana. De ligar pra mainha sempre aos domingos pra receber as bênçãos dela. De comer todos os dias no self-service porque não suporto e nem sei cozinhar. De fuçar a rede e descobrir novas leituras pra me considerar mais desimportante ainda. De recusar ligações e não responder a mensagens chatas no WhatsApp, enfim. Mas, sinceramente, eu não preciso votar.

 

Preciso é de uma faxineira a cada 30 dias pra limpar meu apartamento. De professores bem preparados, bem respeitados e bem pagos. E de alunos respeitosos também. De encontrar o vendedor de picolés nesse sol filho da puta aqui do Tocantins. De renovar meu plano de saúde que há tempos estou sem, porque o orçamento só aperta. De fazer cara de demente quando encontro com quem eu não gosto. De, esporadicamente, tomar um ansiolítico, porque conseguir terapia na rede pública aqui também tá foda.

 

Dirão o óbvio: e por que você vai votar? Eu, sinceramente, não sei.  Talvez - como milhares de brasileiros - eu seja mais uma vítima desse conluio no qual se transformou esse Brasil imenso, colorido, desgovernado, mas do qual eu tanto preciso pra viver. Talvez. Eu também deixei isso acontecer. Eu também sou foda.

 

Se o voto representa nosso poder de escolha, então por que me obrigam a votar, sob pena de sofrer penalidades? Que escolha é essa? Fomos surrupiados mesmo, desde lá de 1500. Bem antes. Não há outra explicação. É assim desde sempre. Desde a época da colonização, quando aqueles brancos fedidos, ladrões e de paus pequenos (li esse detalhe em algum lugar) nos retiraram à força de uma terra linda. Tomaram-nos à força daqueles índios lindos, quando o glúten e a lactose não interferiam na formação de seus abdomens mais lindos ainda. Todos bem abastados em sua forma física e genital. Os índios, e índias, claro.

 

É assim também desde o meu primeiro voto, quando cantarolava “Lula, lá”. De lá para cá, mudamos apenas os meios, a metodologia. A verdade é que deixamos de correr carregando a consciência ultrajada de um povo na urna de lona, para carregar essa mesma coisa numa mala. Ou em cuecas. Ou em paletós. Ou em gravatas. Ou em licitações fraudulentas. Ou no feminicídio. Ou no extermínio dos LGBTIs. Ou em tailleur, bem menininha, pra que ninguém me chame de machista. Hoje eu até arrepio quando falam naquele cara que começa com B e termina com O. Deusulive!

 

Ouço que tudo melhorou depois da Constituição de 1988. Eu, sinceramente, não preciso acreditar nisso. Queria mesmo era votar no Odorico Paraguaçu, do grande Dias Gomes, e do também grande e fodão Paulo Gracindo. Quando apenas a obra do cemitério em Sucupira era o mote. Tornamo-nos mais corruptos ainda: de arranjar um defunto pra inaugurar o cemitério, passamos a fraudar rodovias, ferrovias, hidrovias e pontes. A matar o povo nos hospitais, a expulsar crianças, jovens e adultos das escolas. A apertar o gatilho por qualquer coisa. Aprendemos a gostar da coleira. A matar nossos filhos e filhas. A matar nossos pais e mães. E ser mortos por eles também.

 

Odorico era que sabia, como ninguém, discursar. Mentia, adoravelmente. Era um neologista que até Ferdinand de Saussure poderia arrepiar-se ao ouvi-lo. Odorico não precisava de discursos na mão pra enganar. Enganava mesmo. Da boca pra fora, e pra dentro. Odorico não fugia a discursos por não saber falar. Essa de que o verbo deve concordar com o sujeito é balela. Sujeito tem é que achar bom e engolir. Sujeito tem é que votar. Pelo bem da democracia.

 

No Tocantins, ninguém pode reclamar. A mesa tá farta e a gente pode votar diferentemente do resto do país. Quantas vezes forem necessárias, a depender de quem será o próximo cassado, ou caçado. O pior é que a cada novela somos obrigados a seguir atrás, limpando a porcaria que os caras deixam pelo caminho, num roteiro mesquinho e ganancioso. Mas rastro é bom. E quando a periculosidade é instigatoriamente vexatória, criminatória e investigatória (me conceda, Odorico!) a gente não deve ficar na janela, igual Carolina, sem ver o tempo passar, como disse o também não menos grande e fodão Chico Buarque.

 

O país é que é sem graça. O Tocantins, não. O Tocantins é o dono da porra toda. Tem até a prerrogativa de nos tirar de casa neste domingão pra escolher entre o niilismo e o niilismo. Ou entre o nada e o nada mesmo. Mas eu vou. Vou fazer minha escolha. E não será nenhuma dessas.

 

Ramiro Bavier é cidadão.

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