Marielle Franco: cidades partidas, violência, apartheid e os guetos dos guetos

A presença de Marielles nos espaços de poder nos fará certamente mexer naquilo que os projetos políticos até o momento não puderam ou não quiseram enfrentar.

Crédito: Da Web

No dia 14 de março de 2020, data que marca dois anos da morte de Marielle Franco, relembro que em setembro de 2019 estive na comissão executiva do X Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico que aconteceu na Universidade Federal do Tocantins, em Palmas. Este evento abriu os trabalhos com o painel Processo de desdemocratização brasileiro e os impactos ao Direito à Cidade com a presença da arquiteta e urbanista Mônica Benício (viúva de Marielle).

 

Na sua apresentação, Mônica retratou a descaracterização da política urbana do país (por meio de mudanças de leis e da constituição), condição que estabelece claros limites à democracia brasileira. Diante deste contexto, apontou exemplos e possibilidades para qualificar o ideal do direito à cidade.

 

A urbanista analisou a lógica de exclusão presente na organização das cidades brasileiras e lembrou a necessidade de considerar a relação entre violência e divisão do espaço público, alertando para o fato de que as milícias estão assumindo o lugar do Estado brasileiro.

 

Ao final perguntou aos presentes: quem pode viver e quem deve morrer nas cidades brasileiras? Em sua opinião, a atual conjuntura vivida exige uma tomada de atitude.

 

No trabalho de Mônica, e em temas urbanos, notamos a presença de Marielle Franco. Tanto como exemplo da extrema vulnerabilidade de setores específicos da sociedade brasileira, quanto pela potência da sua figura como símbolo de ressignificação de práticas políticas e dos espaços públicos – que estão se materializando nas ruas e parques que vem sendo rebatizados com seu nome em várias cidades do mundo.

 

Marielle Franco sacrificou a sua vida pela luta contra o racismo, o sexismo, a injustiça social e a captura do Estado pelo crime organizado. A sua nobreza e a coragem da sua luta impressionaram todos os que a conheceram, independentemente de posições políticas. É inegável que o seu brutal assassinato abalou o mundo, que ocorreu como manifestação de ódio que explode sobre os corpos que ousam ocupar seu espaço natural: a cidade.

 

Este cenário macabro impulsionou uma investigação criminal QUE QUASE investiga, QUE QUASE sabe quem a matou e mandou matar, QUE QUASE se dispõe a formular acusações e a julgar. Porém, ESTE QUASE parece nunca terminar, transformando-se num pesadelo para a família de Marielle e para o mundo.

 

É necessário entender que ao tratar do nome e das causas de Marielle Franco deveríamos resgatar os fins da sua luta e o seu significado. Ressalta-se que o seu sacrifício jamais poderá ser banalizado, mesmo porque, não seria possível ignorar os fortes indícios de que Marielle foi assassinada pelas milícias.

 

Temos de lembrar que a vereadora à época havia atuado, pouco antes de sua morte, na CPI sobre o referido tema, na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro.

 

Neste sentido, precisamos entender e enxergar que o debate aqui proposto tem de ser fundamentalmente comprometido como luta por justiça à Marielle Franco e ao Anderson Gomes. Afinal, são dois anos sem resposta para a pergunta: quem mandou matar Marielle? Entretanto, inadvertidamente retornamos ao QUASE, já tratado anteriormente. Afinal, basta de QUASE, o mundo precisa da resposta.

 

Assim sendo, levando-se em conta a história desta heroína brasileira e sua violenta execução, como forma de manter a memória social necessária ao caso, seria fundamental a reflexão sobre quem foi Marielle e o que representou e a sua presença no cenário político-institucional da cidade do Rio de Janeiro. Aliás, corrige-se em tempo, o que ela continua a representar, porque vive.

 

Espaços dos guetos, dos guetos, dos guetos

 

Portanto, inegável, falar de Marielle e sua luta é revelar nossas cidades partidas entre “centros” e “periferias”, que não dão conta de apontar todas as dimensões deste Apartheid social, que é reforçado pelas políticas locais, em Palmas (TO), reconhecido como espaços dos guetos, dos guetos, dos guetos.

 

Evidente que por esta natureza se configuram em frequentes violências e significados. Assim, falar de Marielle é assegurar que as cidades têm cor e gênero, têm bairros ricos e pobres, e esses elementos não são secundários.

 

Questiono aos leitores para reflexão: alguém tem alguma dúvida de que há uma diferença constante da presença dos serviços públicos nos bairros centrais e periféricos da cidade? Ora, observamos diariamente este tratamento desigual por parte do Poder público.

 

Deste modo, as deficiências de infraestrutura e serviços nas margens da cidade vão muito além da ideia de “ausência” governamental, trata-se na verdade de uma presença estigmatizadora, racista e violenta por parte do Poder público.

 

Evidentemente que esta política urbana preconceituosa, racista e estigmatizadora humilha parte significativa da população. São movimentos constantes para tentar apagar a humanidade e os direitos desta população a se constituir como sujeito na esfera pública para levantar sua voz e se fazer respeitar no mundo da política, lógico que isto detona a violência nos seus variados formatos.

 

Neste sentido, Marielle foi vítima de um assassinato covarde por ousar furar estes bloqueios e afirmar que podia sim, como todas as meninas e mulheres negras moradoras dos territórios populares do Brasil, elevar a voz e ousar governar o país.

 

Evidente, neste contexto, não podemos esquecer que estamos falando de uma vereadora negra, oriunda de bairros periféricos, opositora das políticas repressivas utilizadas pelas forças de segurança, que reforçou o debate sobre esse modelo de cidade mercadoria, fruto de uma política hegemônica do Estado, marcada pela exclusão e punição. E, está vereadora tinha como discurso a tentativa de convencimento de que “o Estado é para todos”.

 

Para além disso, Marielle Franco, contrariamente ao senso comum, contrapunha-se a manutenção dessa violência estrutural, que é justificada e legalizada pelo aparato vigente, dizia que ruas cheias de polícia representam insegurança, e não segurança como é sustentado pela ideologia dominante.

 

Portanto, argumentava que “a forma como a polícia militarizada do Brasil trata jovens negros, pobres, como inimigos em potencial do Estado de Direito” serve para produzir uma impressão na população, qual seja, a de que está em jogo a defesa de todos. Ao contrário, esse modelo em curso reforça a violência estrutural.

 

Para entender este desfecho trágico se verifica que o assassinato de Marielle expôs as contradições de um sistema que exalta a meritocracia e diz que a cor e a origem pouco importam diante do esforço individual. Isto é mentira! Pois alçar um espaço na vida pública não foi suficiente para impedir que ela fosse morta. Entretanto a sua morte, não poderá, sob hipótese, alguma ser uma mera estatística.

 

Para fechar a mensagem cabe dizer que as milhares de Marielles que estão rompendo parte destes bloqueios e emergindo como sujeito político, parte disso graças a políticas sociais existentes, hoje objeto de ataque feroz pelo Governo Federal, não podem se calar. Portanto, a presença de Marielles nos espaços de poder nos fará certamente mexer naquilo que os projetos políticos até o momento não puderam ou não quiseram enfrentar.

 

 

Por João Bazzoli - Professor do Curso de Direito e do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Regional da Universidade Federal do Tocantins. Pós-doutoramento pela Universidade de Lisboa. Coordenador Regional do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU). Focal Point UN-HABITAT/ONU/UFT. Pesquisador em Planejamento Urbano.

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