O biopoder e relação de inimizade

Ao pararmos para almoçar em uma churrascaria de posto de gasolina, fomos impedidos, mas não apenas impedidos, tivemos a porta de vidro cerrada nas nossas incrédulas caras

Crédito: Divulgação

Em Necropolítica, Achille Mbembe (2018) chama de as topografias recalcadas de crueldade, alguns ambientes em que as relações de poder promovem a submissão, sacrifício e redenção, martirização, ausência de liberdade e suicídio. Em uma das minhas incursões a trabalho pelo interior do Tocantins, acompanhando uma equipe de técnicos da saúde para realizar um trabalho com comunidades indígenas no município de Araguaína-TO, me deparei com uma das cenas mais surreais que já vivi. 

 

Ao pararmos para almoçar em uma churrascaria de posto de gasolina, fomos impedidos, mas não apenas impedidos, tivemos a porta de vidro cerrada nas nossas incrédulas caras - sob o argumento de que naquele estabelecimento não aceitavam passageiros de ônibus! Surpresos, alguns de nós argumentaram não se tratar de passageiros de ônibus, que na verdade éramos uma equipe ligada à saúde. Ato contínuo, a responsável pelo estabelecimento foi chamada para validar o nosso ingresso, como pessoas não passageiras de ônibus! Uma de nós - mulher negra - se recusou a consumir naquele estabelecimento. 

 

Eu confesso que comi, mas não sem uma ressaca moral, por não ter sido capaz de recusar o indigesto cardápio do preconceito, do racismo, da aporofobia. Consumi, não sem me sentir extremamente mal, degustando o pensamento de que vivemos em um país em que a cara das pessoas nem tremem ao praticar atos de violência como esses.   Impossível não associar o que ocorreu com o pensamento assertivo de Mbembe, que nomina esses espaços como topografias recalcadas de crueldade: esse adjetivo se adequa ao tratamento dispensado ao passageiro de ônibus e ao atendente que é o responsável por informar o impedimento, que para piorar o cenário, pediu-nos desculpas por ter impedido a entrada. 

 

Ele, é óbvio, temendo pelo emprego, em que ele tem que fechar a porta na cara das pessoas que querem consumir naquele estabelecimento, pessoas conduzidas por veículo automotor de transporte coletivo de passageiros em viagens intermunicipal ou interestadual, ou seja, gente considerada pobre pelos donos da churrascaria. Esta, que além de colocar o boi na brasa, deixa em brasa o nosso conceito de direitos humanos e implode o princípio originário do comércio, exercendo sobre os corpos um biopoder que lhes foi atribuído pela lógica perversa da exclusão.

 

Juliete Oliveira, é uma livre pensadora. 
 

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