Hoje, nossa Palmas, a capital planejada que nasceu do sonho de um novo estado, celebra 36 anos de vida. Olhamos para trás e vemos o concreto que subiu, as avenidas que se abriram, a energia vibrante de uma cidade que cresce e atrai gente de todos os cantos do Brasil. Há muito a celebrar, muito a se orgulhar nesta jovem metrópole no coração do país.
Mas, em meio às justas comemorações, é impossível ignorar uma sombra que teima em pairar sobre a vida de muitos palmenses: a sombra da fome e da insegurança alimentar. Uma realidade dura, que contrasta com o brilho dos prédios e a promessa de prosperidade. E essa realidade ganhou um contorno ainda mais urgente e oficial com a recente instauração, em 3 de abril de 2025, do Procedimento Administrativo nº 2025.0005361 pela 15ª Promotoria de Justiça de Palmas. O objeto? Nada menos que "apurar, acompanhar e fiscalizar a implementação da Política Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional em Palmas/TO".
Essa ação do Ministério Público não é um mero ato burocrático. É um reflexo da dor, da dificuldade e da urgência que milhares de famílias palmenses enfrentam diariamente para colocar comida na mesa. É um chamado à responsabilidade de todos nós – governo, sociedade civil e cidadãos – para olhar de frente para o mapa da fome em nossa cidade.
O Que Significa Segurança Alimentar? Vai Além do Prato Vazio.
É fundamental entender o que abrange a segurança alimentar e nutricional. Não se trata apenas de ter algo para comer, qualquer coisa. A segurança alimentar e nutricional é a garantia do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA). Isso significa ter acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer outras necessidades essenciais como moradia e saúde. Significa que essa alimentação deve ser socialmente justa, culturalmente apropriada e ambientalmente sustentável. É um pilar inegociável para a dignidade humana, a saúde e o pleno desenvolvimento.
Para garantir esse direito, existem estruturas e mecanismos. No âmbito nacional, temos o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN), que busca articular governo e sociedade. Em Palmas, essa articulação se dá, em parte, através do Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional (COMSEA) e da Câmara Intersetorial de Segurança Alimentar e Nutricional (CAISAN). O COMSEA, com forte participação da sociedade civil, é um espaço vital de controle social e assessoramento ao prefeito, propondo diretrizes e monitorando as políticas. A CAISAN, por sua vez, reúne diferentes setores do governo para coordenar a execução dessas políticas de forma integrada.
Os Números Que Gritam em Palmas
Apesar da existência dessas estruturas e de programas importantes, a realidade em Palmas, revelada por dados recentes, é alarmante. Um diagnóstico de 2024, baseado na Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA) com famílias atendidas nos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), acende um sinal vermelho intenso.
Entre as 822 famílias pesquisadas em 2024, apenas 6,8% se encontravam em situação de segurança alimentar. Isso significa que mais de 93% dessas famílias enfrentavam algum nível de dificuldade no acesso pleno e regular a alimentos. A distribuição da insegurança alimentar entre elas é chocante:
Insegurança Alimentar Leve: 32,2%
Insegurança Alimentar Moderada: 32,6%
Insegurança Alimentar Grave: 28,4%
Quase 30% das famílias pesquisadas em 2024 estavam em situação de insegurança alimentar grave. Isso não são apenas estatísticas; são pais e mães sem saber como alimentar seus filhos, são crianças indo para a cama com fome, é a dignidade sendo ferida no mais básico dos direitos. É a fome batendo à porta em nossa capital de 36 anos.
Ferramentas Existem, Mas Precisam Chegar a Quem Precisa
No âmbito do município de Palmas, a segurança alimentar e nutricional é abordada através de vários programas e iniciativas. Temos o Plano Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional (PLAMSAN), que é o documento que norteia as ações, estabelecendo metas e estratégias. O município também participa de programas federais como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que incentiva a compra de produtos da agricultura familiar para distribuição social. A criação da Central de Distribuição de Alimentos da Agricultura Familiar, promovida pela adesão ao PAA, é um passo importante para garantir a distribuição eficiente de alimentos produzidos localmente. Além disso, há Iniciativas de Educação Alimentar e Nutricional para promover hábitos saudáveis e outras ações como a gestão de bancos de alimentos.
Esses programas e iniciativas têm objetivos claros: garantir o acesso a alimentos saudáveis, fortalecer a agricultura familiar, promover a alimentação saudável e combater a insegurança alimentar. São ferramentas essenciais na luta contra a fome.
O Chamado Urgente à Casa do Povo
Sabemos que o governo está comprometido em diminuir a desigualdade social e que há esforços em andamento. A adesão de Palmas ao SISAN em 2024, por exemplo, é um avanço importante que nos conecta a uma rede nacional de suporte. Mas os dados de 2024 mostram que precisamos ir muito além. A persistência da insegurança alimentar grave exige uma resposta à altura da sua urgência.
É aqui que a Câmara Municipal de Palmas, a verdadeira Casa do Povo, precisa assumir um papel de liderança inquestionável. Diante do procedimento administrativo instaurado pela 15ª Promotoria de Justiça para fiscalizar a política de SAN, e diante dos números que revelam a dor de quase 30% das famílias em insegurança grave, não podemos nos calar.
É urgente que a Câmara Municipal convoque uma audiência pública em caráter de urgência para debater o mapa da fome em Palmas e deliberar sobre políticas públicas de inclusão social. Que seja um espaço onde as vozes das famílias afetadas, dos conselheiros do COMSEA, dos gestores da CAISAN e da GSAN, das organizações sociais que atuam na ponta, dos agricultores familiares e da própria 15ª Promotoria de Justiça ecoem e exijam soluções concretas e eficazes.
Não basta ter planos no papel; é preciso garantir que eles cheguem à mesa de quem precisa. Não basta ter conselhos; é preciso que suas vozes sejam ouvidas e suas propostas implementadas. Não basta ter programas; é preciso que eles tenham recursos adequados e cheguem a todos os territórios, especialmente os mais vulneráveis.
Que os 36 anos de Palmas sirvam não apenas para celebrar o passado e o presente, mas para renovar nosso compromisso com um futuro onde a segurança alimentar e nutricional seja uma realidade para cada palmense. Que a audiência pública na Câmara Municipal seja o ponto de virada, o momento em que a Casa do Povo abra suas portas para enfrentar, de forma transparente e urgente, a sombra da fome. A luta por um prato cheio é a luta pela dignidade de Palmas. É uma responsabilidade coletiva e um imperativo moral para a capital que ousamos construir.
Paulo Alexandre Rodrigues de Siqueira é Promotor da 15ª Promotoria de Justiça de Palmas/TO e Doutorando em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos pela UFT/ESMAT.
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