Uma figura tornou-se muito comum durante a pandemia da Covid-19: o fiscal de pandemia. Em que pese a nomenclatura lembrar a algum cargo público, esta figura se notabiliza, sobretudo nas redes sociais, criticando o comportamento de pessoas que não observam o distanciamento social, a utilização de máscaras e outros protocolos para evitar o aumento do contágio. Todavia, como estudiosos da área do Direito, precisamos refletir sobre o fiscal de pandemia a partir de um prisma jurídico e das áreas que as Ciências Jurídicas se correlacionam.
Antes, porém, da análise, é preciso fazer uma justa homenagem: o fiscal de pandemia é uma pessoa que acredita na ciência e não se deixa seduzir pelo terraplanismo que se alastra pandemicamente em todos os ramos dos saberes, lutando contra os fatos e a realidade.
Retomando, no plano fático das diversas organizações sociais que as pessoas atuam, somente uma tem o efetivo poder de compelir um indivíduo à prática, regulação ou abstenção de uma conduta: o Estado. Este ente, nos dizeres de Kelsen, é uma ordem jurídica consolidada e por meio de seu direito posto exerce essa autoridade sobre todos os indivíduos súditos do Estado.
Dessa forma, a atividade administrativa do Estado confere-lhe o chamado poder de polícia, cuja melhor definição se encontra no Código Tributário Nacional, em seu artigo 78 que reza sendo “atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público”. Ou seja, essa limitação do livre arbítrio do indivíduo tem fundamento na supremacia do interesse público sobre o particular, corolário para que tenhamos o mínimo de uma organização para o convívio social.
Por essa razão, e com extrema justiça, que prefeitos e governadores de todo o país, visando minimizar a transmissibilidade do vírus da Covid-19, decretaram medidas de restrição ao comércio, à circulação de pessoas, proibiram eventos e uma série de atividades: somente a Administração Pública pode impor uma conduta homogênea às pessoas e sancionar as que não obedecem. Ali está a legitimidade, pois é oriunda de um comando estatal.
O que proponho neste breve arrazoado, então? Que canalizemos a nossa revolta. Enquanto atividades não forem proibidas pela Administração Pública, caso entenda como necessário ao controle da pandemia, é apenas um juízo valorativo individual criticar quem está, licitamente, comendo um espetinho na esquina, por exemplo. É justo o repúdio, sim, mas esta é uma esfera absolutamente privada, e não contrariando as ordens do Estado, não há que se fazer nada.
Enquanto se joga fora o pequeno problema pela janela, o grande problema sai pela porta da sala. O juízo moralista sobre condutas lícitas praticadas pelos indivíduos no âmbito da sua discricionariedade é o problema pequeno, mínimo. O grande problema é o que deve ser apontado: prefeitos e governadores sofreram um linchamento político muito grande em razão do terraplanismo que domina o Governo Federal. A Administração Pública Federal sabotou o combate à pandemia, desautorizou as autoridades sanitárias, ignorou que todos os países já negociavam sua cota de vacina.
Quando se superar a análise pequena de olhar as condutas individuais e importarmos com o problema melhor, aperfeiçoamos a democracia. O brasileiro e a brasileira devem olhar para os espaços da Administração como seus, como administra sua casa. A distância entre governante e governado apenas torna falsa nossa democracia. Exigir um governo que respeite a ciência e as pessoas é o devemos fazer. Afinal, nosso juízo moral cabe a nós, mas o interesse público está no âmbito do Governo, cúpula política do Estado.
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