Uso gay como recusa aos subterfúgios amenizantes do politicamente correto, fuga dos tabus que silenciam o obvio, que sexualidade é um dado da natureza, com alguns condicionantes sociais, mas pequenos, porque o desejo impera sobre o corpo: “Deus, faça-me casto... mas não agora”, oração de Santo Agostinho quando jovem; “Lo-li-ta, ferve minha carne...” em Vladimir Nabokov. O que quer o desejo? Ser saciado, o desejo não pede, impera sobre o corpo, sua vítima age obediente e recebe em troca o prazer.
Onde está o gay? Vi a homossexualidade nas pinturas rupestres do sítio arqueológico da Serra da Capivara, em São Raimundo Nonato-PI, coisa de 10, 12 mil anos atrás. Colegas historiadores me apresentaram teses de homossexualidade na pré-história como função suplementar do controle de natalidade. Sabe-se que a duradoura sociedade egípcia antiga localizou o gay na sociedade com a união civil, o casamento; cabeleireiros e maquiadores, por exemplo, eram quase sempre gays, algo similar a nós contemporâneos. Casais de homens legalmente aceitos pelo Estado a mais de 3000 anos atrás. E nós ainda nessa lengalenga. Aborrece!
O grande guerreiro Gilgamesh, da mitologia suméria antiga, era bissexual, amante de Enkidu. O rei Davi, belo e artista, viveu seu amor com Jônatas. Os gregos, por exemplo, os atos homossexuais eram comumente aceitos na esfera privada. Os romanos da época imperial levaram a homossexualidade a limites pouco vistos na história universal. Deixaram muitos vestígios em vasos e esculturas. César, um dos homens mais poderosos que se tem notícia, foi amante do rei da Babilônia quando ainda jovem, em fuga das conspirações palacianas. Morre o homem, fica a fama: na boca do povo, César era a rainha da Bitínia, o homem de todas as mulheres e a mulher de todos os homens! Heliogábalo, imperador, filho de Caracala, tinha modos femininos, usava peruca, gostava de ser chamado de menina, teria também desejado que o castrassem e pusessem-lhe uma vagina. Nero chegou a casar-se com um homem; Calígula, devasso maior. Em “Os doze Césares” de Suetônio, há riqueza de detalhes.
Conhecemos mais os gregos pela pesada tinta de Paulo de Tarso, um grande castrador: “se qualquer parte do seu corpo te levar ao pecado, corte e jogue fora, porque é melhor perder essa parte, que a vida eterna...”. E na Bíblia temos a frequente presença dos castrados de fato, os eunucos, seres de identidade indefinida, feminilidade sugerida, macheza arrancada, transferida aos senhores.
Santo Agostinho, de Hipona, explicava a decadência de Roma associando-a a Sodoma e Gomorra. E a Igreja tomou para si, em certas épocas, o papel de perseguir os sodomitas, culminando com a Inquisição, que esteve aqui no Brasil. Dela temos a notícia de religiosos que chegavam a andar de mãos dadas pelas ruas com seus amantes, pontinha do iceberg da liberdade a que desfrutavam.
A repressão à sexualidade que temos ainda hoje não data de longe, a coisa era muito mais frouxa nas cortes absolutistas. A moral burguesa, associada à vitoriana, foi o elo entre a tradição inaugurada com Paulo. Nem mesmo Jesus Cristo perdeu seu precioso tempo apedrejando. Desde João Paulo II, a Igreja entende como “inclinações desordenadas”, convida ao celibato e não vê tentação como pecado. O papa Francisco apontou outra direção, “não se deve marginalizar essas pessoas por isso”, “elas devem ser integradas à sociedade”. No sínodo da família em 2014, a Igreja afirma que os homossexuais têm “os dons e qualidades a oferecer” e indagou sobre aspectos positivos de casais do mesmo sexo. O cardeal estadunidense Raymond Burke, ultraconservador, voz contrária, foi afastado da presidência do Supremo Tribunal do Vaticano.
O “problema gay” não é bandeira católica. Evangélicos sentem-se mais à vontade. A tradição de Calvino por aqui é muito forte - personagem sádico, que empalava suas vítimas – pentecostais, teologia da prosperidade, a base de tudo isso está nele. Se a base estivesse na tradição de Lutero – alemão bebedor de cerveja -, talvez fossem bem mais tranquilos e simpáticos, como aponta a Igreja luterana estadunidense, que aceita o casamento gay.
Nós brasileiros somos muito sexualizados, um povo erótico. Gilberto Freire escreveu, “os homens saltavam em terra escorregando em índia nua e os padres precisavam descer com cuidado, se não atolavam o pé em carne”. A maior sociedade escravista, depois de Roma Antiga, não poderia dar em outra coisa. O corpo do escravo pertence ao seu dono, senhor do seu corpo, fonte de riqueza e gozo, fundamento do poder obsceno nacional. Foram mais de 350 anos de escravidão. Muita coisa para 500 anos. O resultado é uma cultura que tem como base a posse do corpo do outro, princípio necessário da relação sexual; limites confusos entre contato e licenciosidade, nossa falta de educação diante dos estrangeiros, a rápida lascívia. Nas metrópoles mais negras do país, o carnaval explode em erotismo, contagiando a todos na maior festa popular do mundo!
E o gay? O gay, quanto mais andrógeno, mais invertido, mais operado, mais põe em risco nossas certezas de identidade sexual. Esse é o incômodo. O gay cômico, caricato, já tem seu lugar social: o rodapé. Aos outros gays: o subterrâneo, a invisibilidade.
O projeto identitário evangélico, por ser recente entre nós, é a voz que mais grita. Marcam espaço. Identidade frágil porque não aceita o diferente, intolerância. Todo recém-convertido é um radical. Querem controlar o indômito. Então, chegamos “aos finalmente”, trata-se de um projeto de poder, querem impor ao outro suas próprias convicções – ação fascista– numa sociedade liberal. Essa cruzada moralista esconde um negócio religioso muito rentável. Daí, ser fácil denunciar a incoerência e o falso moralismo. Fácil demais.
O que querem os LGBT? Querem o lugar social devido. Enquanto não houver, os guetos do “amor que não ousa dizer o nome” se formarão. O problema é que o gueto de vez em quando explode em revolta, como as crescentes cenas chocantes que vimos na Parada gay de São Paulo. Eles dizem: olhem pra nós, estamos aqui, há mais de 200 anos os homens são iguais, também queremos esse direito.
Sérgio Henrique Moura Estevão é professor de História do IFTO, do Campus de Araguatins.
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