Um projeto político de mais de 40 anos de campanha, bem sucedido com sua criação em 1989, quando as forças vitoriosas se posicionaram nos postos de poder, iniciando uma nova disputa para a melhor localização na distribuição das riquezas material e simbólica. Os donos do poder: oligarquias, maiores e menores, em associação com o grande capital, interno e externo. Logo abaixo, o poder do cotidiano nos quadros de empresários e nas castas superiores do setor público, que instrumenta todas as cadeias de comando, obtendo o controle dos negócios diversos, dos debates pela imprensa, ordem pública, eleições, arrecadação, educação e etc…
A identidade do Tocantins nasceu tendo como ponto material a luta pela autonomia, que com a abertura da fronteira após a década de 1940 produziu desequilíbrio entre arrecadação fiscal e benefício público. A defesa do projeto passava pela apresentação de um quadro lastimável de carência, miséria e abandono, resutando numa identidade rebaixada do norte goiano. Após 1989 essa campanha foi substituída pelo seu correspondente oposto, com a recomposição da identidade balizada pelo otimismo, progresso e modernidade, instrumentos indutores da altivez. A coesão social forte capitalizou os grupos políticos envolvidos. Coroando todo esse processo de recomposição da identidade regional: Palmas, a capital. Modernista, ampla, monumental, se equiparando aos centros modernos do mundo. Modernidade cosmética a esconder o de mais tradicional: o Palácio Araguaia como ponto central (barroco) e a segregação social.
Historiadores, especialmente os não profissionais, se esforçaram em inventar longa tradição ao Tocantins, sem se incomodar com anacronismo ligam os eventos do início do XIX a 1989, eventos desconexos (1821-1823, 1956-1960, 1985-1988). Inventaram um mito fundador, Theotônio Segurado, que na conta de Cunha Matos, um honrado quadro do império português, não passava de um oportunista desonesto e classificações piores.
Theotônio, após frustrado desejo de tornar-se presidente de Goiás, retornou ao norte e utilizou a insatisfação fiscal para implantar uma nova provincia, que com alguns aliados, declara-se presidente. O importante era sacralizar, com a tradição inventada, a identidade política que acabava de nascer. Os historiadores não profissionais, sobretudo, esqueceram que o pacto oligarquico até 1930 impediu a fragmentação do território. Exemplos como o banimento de cel Carlos Leitão (Boa Vista, Tocantinópolis, que desejava incorporar o extremo norte de Goiás ao Maranhão, igualmente o caso de Volney Martins, interessado em incorporar Dianópolis à Bahia, são exemplos da punição que confirma a regra.
Sem o golpe de 1964, o governo de Mauro Borges teria integrado norte-sul do território goiano na mesma dinâmica de progresso? Hipótese instigante. Entusiasta do planejamento, viu a Marcha para Oeste de Vargas, executado pelo seu pai, Pedro Ludovico, dava continuidade aos programas de colonização, formação de mercados, construção de cidades projetadas, modernização finalizando porventura com agroindústria. Cidades muito simpáticas como Colinas e Combinado, guardam até hoje a marca da organização campesina convertida em pequena burguesia agrária em alguns casos. O golpe de 64 associou o modelo latifúndio ao Tocantins, com ampla terra improdutiva, baixa densidade demográfica, baixa produtividade, miséria e concentração de poder.
Araguaína é um paradigma perfeito, tem a marca da grande propriedade, dualidade fazendeiro-peão. Entre o forró e o sertanejo (centro-sul/norte-nordeste), as comunidades afetivas se organizam na hierarquia. A cavalgada é seu maior símbolo de sucesso no controle social. Triunfo dos vencedores, por onde passa empolga a multidão de vencidos, que com devoção comunga no ritual de consagração do poder local. Símbolo oposto, romaria de padre Josimo, mártir assassinado por um consórcio de ricos fazendeiros, lembrando a virtuosa rebeldia campesina da região Bico do Papagaio na luta das famílias pobres pela terra.
Com a criação do Estado, uma nova fronteira se abriu, ocupação de terras com expansão demográfica. Uma pós-fronteira. O Tocantins se tornou o território de Projetos de Grande Escala (Hidrelétricas grandes e pequenas, agronegócio em pecuária, grãos e silvicultura, ferrovia, hidrovia, mineração, construção de Palmas, etc…). Com maior controle logístico, o território se converteu num grande produtor de renda líquida externa, para multinacionais e diversos capitais de inversão. Explorando as possibilidades das cadeias produtivas, com dinheiro público dos bancos de desenvolvimento, há incremento e até formação de burguesia regional. O caso de Campos Lindos prova que ainda há acumulação primitiva de capital com uso da violência na conquista da terra. Essa sinergia de forças dominantes entre oligarquias, grande capital e aparelhos de Estado cooptados, imprimiu o modelo de capitalismo predador no Tocantins, que se mostrou muito eficaz na ampliação exponencial da riqueza privada. Em estado maduro, nossa oligarquia mais potente e representativa participa da implantação desse modelo no norte de Moçambique, na região de Nampula, com o mesmo expediente: expulsão de camponeses das terras, produção de grãos em larga escala para exportação, renda para multinacionais e inchaço da capital Nacala com pessoas miseráveis. Do pró-serrado ao pró-savana..
O Tocantins é um lugar que tornou muita gente rica, mais rica e muito de rica, com destaque para negócios predadores e corrupção. Hoje temos estradas boas, equipamentos urbanos públicos e privados, demais instrumentos modernos, o IDH aumentou (casa dos 0,300 em 1991 a 0,700 em 2010), a vida do tocantinense em geral melhorou significativamente. O atraso já não é mais um fantasma a nos subtrair auto-estima. Se na década de 1950 nosso norte de Goiás tinha 80% de analfabetos, momento em que as Câmaras Municipais discutiam sobre “o problema dos indigentes”, atualmente são oficiais 10%. A extrema pobreza recuou de 30% a 40% para 5% a 17% (PNUD 1991-2010). Os índices, numa perspectiva da longa duração, são animadores, embora a realidade da nossa miséria ainda seja um desalento.
O Tocantins é uma invenção das oligarquias acomodadas ao longo do território. A Narrativa escrita em função da criação e instalação do Estado foi ajustada a seus interesses políticos. Com grande incremento populacional por migração, fronteira aberta duas vezes, aguardando a terceira (MATOPIBA), desejos de modernidade, podemos aguardar um ajuste da identidade e das forças políticas?
Sérgio Henrique Moura Estevão, 42, é historiador e professor do IFTO-Porto.
Comentários (0)