O Brasil é uma nação laica. Não quer dizer que seja uma nação ateia. Apenas não adota nenhuma religião como oficial. A finalidade é mais do que justa: não tendo preferência por nenhuma doutrina, o país pode vivenciar plenamente a pluralidade no que se refere às questões da fé. Todos os credos podem conviver em harmonia, já que gozam de igual importância perante o Estado, esse ente onipresente que rege cada detalhe de nosso convívio em sociedade. Até o exercício da não-religiosidade tem que ser considerado como parte desse ambiente harmônico.
Ao determinar a laicidade do Estado brasileiro, a Constituição Federal de 1988, nossa Lei maior, deixa claro que nenhuma religião pode receber tratamento privilegiado, da mesma forma que nenhuma delas pode ser tratada com desmerecimento.
Entro no assunto porque, na programação de shows anunciada pela prefeitura de Palmas para o Festival Gastronômico de Taquaruçu, que ocorrerá no mês de setembro, constam duas apresentações de caráter religioso. Ressalte-se, as duas de uma única religião – no caso, a Evangélica. Ou seja, é o princípio do Estado laico sendo, oficialmente, desconsiderado pelo poder público.
É como se o Brasil fosse laico, mas a capital do Estado do Tocantins não o fosse – pelo menos durante o período do Festival Gastronômico.
Mas o problema principal é que este não é um caso isolado. Não é a primeira vez que um credo recebe tratamento preferencial por parte do Executivo municipal. Recentemente, a cidade adotou o título de “Capital da Fé”, tendo como justificativa uma finalidade econômica: promover o turismo religioso, atraindo consumidores de outras localidades e aquecendo o comércio. Sob esse pretexto, sempre que encontra uma possibilidade, a prefeitura inclui apresentações musicais religiosas em eventos oficiais. Mas, geralmente, só uma religião é contemplada. No máximo, duas – a Católica e a Evangélica. Tem sido assim reiteradamente. As demais religiões nunca são lembradas. Virou costume, como se fosse o normal.
É como se não existisse, nessa “Capital da Fé”, quem professe a fé espírita, umbandista, candomblecista, budista, daimista, e sabe-se lá quantas outras mais. Mas esses fiéis existem. E estão completamente à margem, embora algumas das suas religiões tenham o canto e a dança como expressões, condição para que também pudessem se fazer presentes no palco dos eventos promovidos pela prefeitura.
Como agravante, esses fiéis não apenas existem e estão à margem. Eles ainda têm que contribuir, por meio de impostos que lhes são cobrados compulsoriamente, para uma programação religiosa que nunca os inclui.
Já ouvi como justificativa a alegação de que, nessas apresentações religiosas realizadas pelo município, a maioria dos fiéis vem sendo contemplada – no caso, os cristãos. Mas a cristandade não é composta apenas de uma ou duas religiões. Nem a fé dos palmenses se resume à cristandade. E nem mesmo apenas a maioria deve ser contemplada. Todos têm que receber tratamento igualitário. Afinal, o Estado brasileiro é laico, e Palmas está inserida no Brasil. Ou não está?
Se o turismo religioso surtiu o efeito econômico esperado, não sei dizer. Mas, caso tenha alcançado esse objetivo, cabe questionar se é válido que o poder público coloque interesses econômicos acima das questões ditas soberanas, referentes à pluralidade da fé e à harmonia entre as religiões.
Flávio Herculano é jornalista em Palmas.
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