A pandemia da COVID-19 tem retirado as máscaras de cada sociedade por ela atingida. O número de casos em países como a Alemanha e a Itália, ambos integrantes da União Europeia, demonstram o quão diferente as consequências de um mesmo vírus (sim, é o mesmo!) pode atingir em razão do comportamento social dos indivíduos que compõem aquele grupo atingido.
Conforme dados oficiais, no último domingo, dia 22 de março de 2020, a Alemanha contava com 24.852 infectados e 84 mortos. Nesta mesma data, a Itália contava com 59.138 infectados e 5.476 mortos. Ou seja, enquanto em número de infectados teríamos uma proporção de um para mais de cada dois habitantes, em número de mortos esse percentual é de mais de que 60 vezes.
Inegavelmente, fatores como o turismo na Itália podem influenciar no número de infectados. Contudo, a população da Itália é de aproximadamente 60 milhões de habitantes, enquanto a da Alemanha é de, aproximadamente, 82 milhões. Assim, algo além do comportamento governamental deve explicar o porquê de números tão díspares.
As ações do governo alemão, assim como de outros tantos países afetados com a pandemia, como o fechamento de fronteiras, escolas, restrições de comércio, entre outros foram e são fundamentais para uma boa gestão da crise anunciada aos sistemas de saúde locais. Mas, referidas ações governamentais guardam distintas consequências. E mais uma vez, nos questionamos o porquê.
Nos parece que a resposta está no que Durkheim chamou de “consciência coletiva”.
Segundo Durkheim:
“O conjunto das crenças e dos sentimentos comuns à média dos membros de uma mesma sociedade forma um sistema determinado que tem vida própria; podemos chamá-lo de consciência coletiva ou comum. Sem dúvida, ela não tem por substrato um órgão único; ela é, por definição, difusa em toda a extensão da sociedade, mas tem, ainda assim, características específicas que fazem dela uma realidade distinta. De fato ela é independente das condições particulares em que os indivíduos se encontram: eles passam, ela permanece. (...) Ela é, pois, bem diferente das consciências particulares, conquanto só seja realizada nos indivíduos. Ela é o tipo psíquico da sociedade, tipo que tem suas propriedades, suas condições de existência, seu modo de desenvolvimento, do mesmo modo que os tipos individuais, muito embora de outra maneira”. (DURKHEIM, 2010, p. 50)
Em momentos críticos, como o que atualmente enfrentamos, esse tipo psíquico da sociedade se revela, escancarando as raízes dos nossos problemas.
No Brasil, e aqui já não há nenhuma novidade, existem legislações avançadas e bem postas, como o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei de Execução Penal, mas, apesar disso, a realidade nestas esferas não é tão boa assim.
Vários decretos proibindo o transporte coletivo intermunicipal, durante a pandemia do COVID19, foram editadas pelos governos locais no Brasil. Mas, rapidamente, conforme noticiado em alguns veículos de imprensa, algumas pessoas entenderam que, para atingir os seus objetivos pessoais, poderiam carregar cerca de trinta pessoas no compartimento de carga de caminhão-báu, no estado da Bahia.
Dito isto, nota-se que as legislações podem ser tornar mera escrita em um papel, se não houver dentro de cada um de nós a certeza da razão pela qual devemos cumpri-las.
A campanha para que as pessoas permaneçam em casa é um exemplo magnífico desse grau de evolução do tipo psíquico da sociedade brasileira. O argumento de muitos para o não cumprimento do regime de “quarentena” é o de que é jovem, sem doenças de base, o que o coloca na condição de enfrentamento da patologia sem maiores consequências.
O argumento daquele que transgride as regras sociais é sempre voltado as suas vontades individuais, ou seja, o estado de animus deste individuo está focado unicamente nas consequências primárias do ato para ele mesmo.
Guardadas as proporções, é exatamente esse sujeito que acredita que desviar dinheiro público ou furtar um tênis não é algo tão grave, afinal vai lhe trazer grandes benefícios e não será capaz de causar grandes danos. A sua esfera de observação está centrada nele próprio, unicamente.
É exatamente neste ponto que a atuação do Ministério Público no Brasil se mostra mais que importante, ela é verdadeiramente essencial.
Desde a Constituição da República de 1988, o Ministério Público no Brasil foi dotado do poder-dever de proteção e estímulo a essa consciência coletiva. A atuação institucional dos membros do Ministério Público é voltado exatamente para a proteção do coletivo, através do cumprimento das normas postas e das ações de fomento as boas práticas republicanas.
O desenvolvimento deste senso de coletividade passa pela ideia de respeito ao outro, ou seja, não prejudicar indevidamente alguém, não favorecer indevidamente a si mesmo ou a outra pessoa, além de cuidar e zelar pelo que é público.
A pandemia do COVID-19 e os perigos coletivos gerados nos levam a ponderar sobre o grau de responsabilidade que temos para o bom funcionamento social.
Os governos, em todas as suas esferas, têm atuado com a restrição de direitos tidos como fundamentais em prol de um cenário menos catastrófico. O Ministério Público tem bravamente lutado ao lado da sociedade para que a restrição desses direitos se dê de forma proporcional ao mal anunciado, fiscalizando, incansavelmente todas as ações adotadas.
A revelação da nossa consciência coletiva vai deixar marcas indeléveis em nossa sociedade. Mas, devemos acreditar que, assim como em qualquer situação nefasta, algo de bom acaba por surgir, e, neste caso, talvez o estímulo a um grande salto da evolução de nosso pensamento coletivo esteja sendo posto em prática.
O Ministério Público é o órgão que nasceu com este pensamento e que tem lutado junto a sociedade para que esse sentimento de pertencimento ao todo seja fortificado no Brasil, o que é decisivo no enfrentamento de pandemias virais ou de outros tipos, como a da corrupção. É a hora de nos voltarmos às práticas republicanas saudáveis e ao sentimento de proteção geral, cuidando muito bem de todos que dividem o sonho da construção de uma sociedade livre, justa e soberana.
Isabelle Figueiredo é Promotora de Justiça em Pedro Afonso/TO (MP/TO). Mestranda. Pós-graduada em Estado de Direito e Combate à Corrupção (ESMAT), com extensão em Combate ao Crime Organizado (Universidade de Roma "Tor Vergata" - Itália), Especialista em Direito Público (UniNassau) e em Direito e Processo Penal (DAMAS). Coautora do Livro "Temas Relevantes de Direito Processual Civil: Elas Escrevem" e do App "CPC Anotado". Promotora integrante da Diretoria da Associação Tocantinense do Ministério Público - ATMP.
[1]DURKHEIM, E. Da divisão do trabalho social. WMF Martins Fontes, São Paulo, 2010.
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