Vinha eu passando pela avenida principal da cidade onde moro quando me deparo com alguns cães e gatos. Não gosto de cães, nem de gatos. Não curto o cheiro peculiar deles. E olha que a covid levou boa parte do meu olfato, menos o medo deles. Com todo respeito, evito encará-los e continuo. Quando falo algo do tipo “que coisa fofa seu cãozinho”, é pra encurtar a conversa e me mandar dali.
No trabalho inventaram, sem consulta prévia, umas dinâmicas num determinado dia da semana. Não gosto de dinâmicas, são um pé no saco e quase sempre baseadas em coaches messiânicos e fundamentalistas. Tento recuar, mas participo em off. Não penso em nada do que se lambuzam dizendo. Pelo contrário, contradigo aquilo que ouço. Na maioria das vezes como forma de provocação e pra mostrar que eu não sou um fofo e que tá tudo bem. Não está.
No grupo de whatsapp de minha família, por exemplo, descobri umas criaturas que votam no capiroto, no inominável, aquele que imita pessoas morrendo por falta de ar. Penso: puta que pariu estudaram para serem esses babacas?! Penso de novo: culpa do que fizeram com a igreja, com a religião, com a esperança. Recuei porque se continuarem na minha frente eu viro onça. Eu viro onça quando tô com reiva.
A cidade onde moro é bem agradável e quente, muito quente. Não havia poluição visual nos automóveis que passavam por mim até bem poucos dias, mas tenho visto agora muitos adesivos e plotagens de causarem medo. Eu não sujo meu carro com adesivos de políticos. Acho cafona.
Há semanas, decidi pela depilação com luzes. Não gosto de pelos no meu corpo. Comecei pela barba, axilas, tórax e abdômen. Depois seguirei pela virilha, glúteos e pernas. Acho mais confortável. No meio de tanta polarização, assumir uma postura minimamente humana é mais sensato. Tudo lisinho e transparente me dá mais tesão. Sempre evitei os sigilos centenários.
Meu psiquiatra acrescentou um novo remédio na minha playlist medicamentosa. Precisava de mais calma pra entender essa porra toda que tá acontecendo nesse país, sem surtar e correr nu pela cidade. Mas lembrei que a perianal ainda não está depilada. Não cairia bem.
Até pra trepar, o papo do “cara e aí… você vota em quem?” eu deixo pra depois, afinal a prioridade é o sexo, nunca o orgasmo. Abstraio. Imagino que é um eleitor do Lula que tá me comendo e pronto. As respostas têm sido as mais brochantes. Mas como eu já havia gozado, tudo bem.
Esses dias entrei numa loja e tinha bandeiras do Brasil pra vender. Toquei as bandeiras expostas e senti o cheiro peculiar dos cães e gatos. Recuei, lembrando agora que esqueci de dizer isso ao meu psiquiatra na última consulta.
Eu curto leituras, universidades, ser bem atendido pelo SUS, mangas e bananas sem agrotóxicos e receber inteiro meu salário, sem rachadinhas. Eu curto o pensamento, na verdade. Na avenida, ainda andando, sinto falta do pensamento, dos amantes do pensamento. Eles estão morrendo. Fico aqui pensando nas estatísticas (sou péssimo em estatísticas!) do pensamento dos sobreviventes de familiares, amigos, conhecidos e agregados dos quase 700 mil mortos pela covid. Já vi muita gente defendendo, mesmo assim, quem ajudou a matá-los.
Essas criaturas devem ter tido seus corações e tripas arrancados pelo Jeffrey Dahmer (Netflix). Ou pelos ranços da classe média - nunca passaram fome e sempre estudaram. Não sei pra quê! Devem ter o coração e a alma cruéis pelo gene da tríade Deus, Pátria e Família. Coitado de Deus, deve tá com uma reiva desse povo!
Meu sonho agora? Tornar-me o Velho do Rio e virar uma sucuri, pra engolir a todos.
Eu vou mesmo é pela ideologia de gênero. Como diz Marilena Chaui, “ideologia é aquilo que falta”. E quanta coisa falta a essas pessoas, exceto a burrice, sempre abundante e varonil.
Vou terminar por aqui porque estou com fome e aqui em casa não tenho o que comer. Lembrei que amanhã tenho que deixar uns currículos no centro e passar antes uma pasta branca vencida na cara pra ver se eles me recebem sem a arma na cintura.
Não posso mais recuar. E o Dahmer não vai me abater.
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