“Meu corpo deixou de ser meu quando alguém decidiu que tinha direito sobre ele.”
— Eliane Brum, O Olho da Rua (2008). Dois acontecimentos — e aqui se recusa a palavra episódio, pois não se trata de acidentes da vida, mas de sintomas persistentes — incendiaram ainda mais a fogueira da violência contra as mulheres nesta semana. Sem esquecer o absurdo diário dessa contabilidade criminosa, faço o recorte de dois casos que não possuem conexão geográfica, mas se encontram na perversidade simbólica: o assédio público sofrido pela presidenta do México e o feminicídio de duas mulheres quebradeiras de coco babaçu em Novo Repartimento (PA).
No segundo caso, duas mulheres — senhoras, trabalhadoras do babaçu, uma idosa de mais de 80 anos (oitenta!), a outra com mais de 50 — foram violentadas e assassinadas dentro da mata, espaço de ofício e sobrevivência, provavelmente por toda a vida. As reportagens dizem: “o caso causou comoção”. Eis aí um problema. Não podemos permanecer apenas comovidos. Como sociedade, como indivíduos, precisamos enfrentar o monstro chamado machismo, essa engrenagem histórica e criminosa do comportamento masculino.
No caso da presidenta mexicana, o véu do alcoolismo reaparece como desculpa antiga para justificar o comportamento invasivo, desrespeitoso e aviltante de um homem. O ativismo de tela — indignações de internet, retuítes de impacto — não altera o comportamento de uma sociedade. Precisamos de mudança urgente: medidas judiciais que sejam cumpridas, vigilância séria, letramento feminista. Não é mais possível permanecer apenas sensibilizados; precisamos ser transformados pela dor que essa violência nos impõe.
Ser quebradeira de coco babaçu, por si só, já é carregar um traço de exclusão, de perpetuação dos abandonos que o Brasil menor — substituo aqui o termo da “geografia da razão” — consagra como destino. É vestir, quase como armadura endurecida, a carapaça da negligência social. Ser atingida por esse tipo de violência — que não é excepcionalidade, mas estatística — é, no mínimo, uma revitimização cruel.
O Brasil inteiro precisa se reconhecer como vítima desse sistema, e não apenas se sensibilizar. Só assim haverá transformação possível, só assim construiremos saídas reais para as mulheres — todas.
Juliete Oliveira
Escritora Feminista
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