Uma democracia para cada um de nós

Nosso cotidiano democrático é tão delicado que por vezes os atos dos grotescos viram folclore. O momento porque passa a presidenta Dilma Rousseff é uma prova cabal de nossa leveza democrática. Como se sabe, a democracia é um sistema de governo, cuja origem é a Grécia. Todavia, lá na origem a democracia não era para todos. Ainda hoje, ao que parece, também não. Nas eleições ocorridas no ano passado, o acirramento em torno dos candidatos escamoteou o apetite que temos, como sociedade, por projetos políticos que não sejam democráticos. No Brasil, como se vê agora, os perdedores de um sufrágio eleitoral, quase sempre não aceitam a derrota e partem para combater o vencedor. Esse combate começa com a desqualificação dos eleitores que votaram na chapa vitoriosa. Depois desse combate, partem contra o sistema das eleições, acusam o processo eleitoral de fraudulento, viciado e manipulado. Nesse caso, os perdedores, as velhas raposas de sempre, o que acirra ainda mais o debate, porque se acham insubstituíveis.

 

Há no pedido de impedimento do mandato da presidenta um ódio de classe. Parte dos que choram a derrota nas urnas é composta pela classe que desde o período colonial mora na casa grande. Para esses, democracia é sempre a vitória deles. Democracia é o governo deles. Nas eleições dos últimos anos, o imenso poder do voto dos mais pobres elegeu e turbinou o governo, que por sua vez, mesmo que minimamente, fez alguma política de redistribuição da renda. Ora, isso é insuportável para os que se achavam senhores natos da nação brasileira. Pobre não pode ter direitos.

 

O que está em cheque no impedimento do mandado da presidenta é um ciclo de políticas que, de alguma forma, beneficiaram os mais pobres. Toda argumentação de base moral contra os feitos corruptos das lideranças políticas que transitaram no governo é um mote que esconde o ódio de classe. Dizer que o governo é corrupto soa delicado ante o desejo de exterminar as pessoas que ocupam o governo. O enredo dos golpistas é conhecido: a) perdem no voto; b) levantam suspeitas; c) atacam os vencedores. O mais grave ainda nesse itinerário é que confabulam entre si como escarnecedores. O golpe nunca pode parecer um golpe. Toda atitude golpista tem de vir embrulhada de valores morais, éticos, de defesa do estado, de atitudes anticorrupção. O rancor, o ódio, a vilania, a maledicência, a soberba, a prepotência, o preconceito não podem aparecer em primeiro plano no pleito dos golpistas. Para eles, a democracia, o respeito ao que preconiza a lei, o rito processual, será levado a termo, só que para execrar o inimigo.

 

O que conforta nesse quadro de revanche e mágoas, é que nunca mais será possível aos ressentidos senhores da casa grande mandar na senzala. Mesmo que ainda existam muitos pobres, muita desigualdade social, o que foi feito nesses últimos anos não é mais passível de regressão. O impedimento do mandado da Presidenta não se sustenta sobretudo porque os eleitores não votam mais nas velhas raposas de sempre. Não adianta os revoltados online vociferarem, não adianta a extrema direita raivosa ir para as ruas pedirem o retorno dos militares, não adianta a câmara dos deputados ranger os dentes. Há uma democracia para cada um de nós, o voto. A democracia brasileira pode até ser frágil, recente, mas é irreversível. Os mais pobres já perceberam que o voto é um poder descomunal. Além do mais, chega uma hora que a máscara dos algozes cai, ai seus dentes afiados ficam à mostra.

 

Adriano Castorino é professor da Universidade Federal do Tocantins, doutor em Ciências Sociais/Antropologia.

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