Independência financeira contribui para mulheres superarem violência doméstica no TO

No Tocantins, 51.640 mil mulheres são donas de pequenos negócios. Os dados fornecidos pelo Sebrae apontam que o número representa 39,6% do total de empreendedores no Estado.

Além de ter seu próprio negócio, Eliane dá aulas para outras mulheres
Descrição: Além de ter seu próprio negócio, Eliane dá aulas para outras mulheres Crédito: Lourenço Bonifácio

“Grávida de quatro meses eu tive uma discussão com a mãe do meu marido sobre as atitudes dele e ela ligou pra ele, pra contar. Ele chegou em casa alcoolizado, drogado, me puxou pelos cabelos, me jogou no chão, me arrastou pro banheiro, ligou o chuveiro e começou a me bater. Depois ele me jogou na cama e continuava a me bater. Minha filha estava deitada no quarto e só consegui ver que ela cobria a cabeça com o travesseiro.  Eu desmaiei muitas vezes naquela noite. Eu só queria sobreviver”, Eliane Silva Marabeli, jalapoeira de Mateiros, designer de sobrancelhas, hoje com 35 anos e mãe de dois filhos.

 

Esse é apenas um trecho da história de violência vivida por quase nove anos por Eliane. Com marcas no corpo e, ainda, na alma, ela conta que, no início, o parceiro apresentava “apenas pequenas” demonstrações de ciúmes, mas se tornou seu maior pesadelo. 

 

“Eu o conheci em São Paulo, quando fui trabalhar. Tinha 24 anos e ele 22. Eu notava algumas coisas, ele bebia muito, era ciumento, mas mesmo assim continuei o relacionamento, engravidei, me casei. Ele me deixava em casa sozinha, controlava minhas roupas, mas eu sempre achei que ele fosse mudar, que quando a neném nascesse seria diferente”, conta. 

 

Depois de viver muitas situações de violência em São Paulo, Eliane decidiu retornar ao Tocantins e se estabelecer em Palmas. Com a filha pequena, começou a trabalhar em um salão de beleza. “Ele ficava vindo e indo pra São Paulo. Toda vez que vinha passava dias na rua, me proibiu de fazer atendimentos masculinos no salão. Um dia, na JK (umas das principais avenidas de Palmas), em frente ao meu trabalho, ele quebrou os vidros do carro com socos, me xingou, me humilhou. Chamaram a polícia, que localizou ele na minha casa, e foi a primeira vez que ele foi preso. Nos separamos, mas logo ele procurou minha família, disse que ia mudar, começou a ir pra igreja, voltamos e eu fiquei grávida novamente”, explica.

 

Mas passado três meses dessa “mudança”, Eliane conta que o filme se repetiu até culminar com o episódio que ela narra no início desta matéria. “O filme se repetia. Mas grávida novamente eu decidi que não queria reviver tudo o que passei na primeira gravidez. Quando ele me espancou, como contei no início, eu senti mais que dor física. Vi que ele me manipulava de todas as formas. Nessa noite ele chegou até a se cortar para se fazer de vítima. Mas depois de muito apanhar, graças a Deus, eu consegui correr pra minha vizinha, chamamos a polícia  e ele foi preso. Aí veio o processo de delegacia, Maria da Penha, Defensoria, divórcio e liberdade”, contou aliviada.  

 

Hoje, além de ter seu próprio negócio, Eliane dá aulas no Centro de Referência da Mulher Flor de Lis, que atende mulheres em situação de violência. Ela sempre trabalhou, mas diz que depois que saiu desse relacionamento violento foi que conseguiu fazer crescer seu negócio no ramo da beleza. 

 

“O que acontecia é que o meu dinheiro era usado para sustentar ele, os vícios dele. Agora, eu uso para investir no meu negócio, para sustentar meus filhos, e o que eu gasto com os dois não é metade do que eu gastava com ele. O que eu vejo é que a mulher ter sua independência financeira conta muito na hora de dar um basta em uma situação de violência”, destaca. 

 

Chega de violência! 

E quem sabe bem da importância de ter a independência financeira é Maria Leonilda de Sousa e Silva, natural de Santarém (PA). Mãe de cinco  filhos, foi morar em Araguaína em 2018 e desde que chegou à cidade passou a sofrer violência doméstica. 

 

“Eu não tinha família, não conhecia nada e nem ninguém e ele começou a me tratar mal, me proibia de sair de casa, dizia coisas que me machucavam. Isso durou até o dia em que eu conheci o Instituto Anita, onde eu me matriculei para fazer curso de costura. Nessa época, minha menina só tinha dois anos e ele até se recusava a ficar com ela pra eu não ir pro curso, brigava, mas eu me mantive firme e pensei: se eu não for, não vou conseguir sair dessa situação”, lembra.

 

Maria Leonilda conta, com muita satisfação, que foi em 2020 que, de aluna, passou a ser professora de costura. “Foi por meio das palestras que tinha no instituto que eu entendi que o que eu sofria era violência psicológica, eu pensava que violência era só quando batia na mulher. Na última vez que ele me ameaçou eu disse que iria denunciá-lo e ele viu que eu faria isso mesmo. Essa força eu também devo a minha liberdade financeira. Sei que na maioria dos casos a situação não termina bem, como no meu, por isso quanto antes a mulher entender a situação que ela vive,é melhor para se evitar tragédias”, reforça a professora. 

 

Atualmente, Maria Leonilda é exemplo para a turma de mulheres que recebe atendimento no Instituto Anita Luiza, que auxilia mulheres vítimas de violência doméstica e familiar. Como instrutora de curso, ela ensina mais do que costura, ensina que é possível superar a violência doméstica e que é necessário buscar sempre mais.

 

“Eu aprendi a me valorizar e abraço todas as oportunidades. Fiz outros cursos no Sebrae, de doces, salgados, ovos de páscoa, e foi uma experiência muito válida. As meninas que fizeram comigo já estão sendo salgadeiras, docerias. Esses cursos são importantes para ajudar as mulheres porque a maioria não sabe por onde começar”, destacou. 

 

Apoio às mulheres 

O que impulsiona Eliane e Maria Leonilda a contar suas histórias é saber que podem servir de inspiração para outras mulheres, é demonstrar, com o próprio exemplo que, de alguma forma, mulheres que conseguem autonomia financeira têm mais chances de se libertar de um quadro de violência.

 

“Quando a gente não consegue dar um basta por conta própria, a gente busca motivos em outras coisas. Eu pensava nos meus filhos e nisso me apeguei para vencer as dificuldades que surgiam diariamente, para conseguir me formar nos cursos e hoje ser instrutora”, reforça Maria Leonilda.

 

O exemplo de Maria Leonilda é confirmado pela pesquisa de aspectos sociais no empreendedorismo feminino, lançada pelo Sebrae no final de 2023. Os dados apontam que o maior motivador para uma mulher empreender é ter renda para cuidar dos filhos. “Diante disso entendemos a importância da liberdade econômica para uma mulher, para que ela não precise se submeter a um companheiro que a trate com violência. E é neste sentido que trabalha o programa Força Mulher, proporcionando às mulheres tocantinenses, em situação de vulnerabilidade social, condições necessárias à abertura de novos negócios”, informa a analista do Sebrae, Sirlene Martins. 

 

O Força Mulher é um projeto de articulação institucional entre  Sebrae e Prefeitura, por meio da Secretaria de Assistência Social e Centro de Referência de Assistência Social (Cras). Para sua realização, o município precisa aderir ao projeto e o Cras selecionar as participantes, com prioridade para mulheres em vulnerabilidade que recebem benefícios sociais e que participem dos programas municipais de assistência integrada.

 

“Esse programa trabalha a mulher dentro do ambiente da violência, dos maus tratos, trazendo a nova identidade dela e com isso, também, ensinando um ofício. Há uma gama de treinamentos que são disponibilizados na área da alimentação, da beleza, da construção civil, de mecânica, na qual elas recebem o treinamento do ofício, recebem o trabalho comportamental para reativar essa identidade da mulher, como orientações financeiras e de acesso ao mercado”, explicou.

 

Mulheres avançam nos pequenos negócios 

No Tocantins, 51.640 mil mulheres são donas de pequenos negócios. Os dados fornecidos pelo Sebrae apontam que o número representa 39,6% do total de empreendedores e refletem um avanço em relação ao primeiro trimestre de 2023, que contabilizou 37,1% de mulheres. 

No Estado, 58,0% das empreendedoras são chefes de família e em Palmas esse número corresponde a 45,1% das empreendedoras.

 

“Vale lembrar que, na hora de empreender, é  muito importante que se tenha um plano de negócios. Ele minimiza os riscos e possibilita que se tenha, de forma clara, o que será feito, como será feito, de que forma essa mulher vai atuar, o que ela vai investir, o que ela vai ter de retorno e o Sebrae conta com profissionais para oferecer essas orientações”, lembra Sirlene Martins, analista do Sebrae.

 

Para ter acesso a essas e outras informações, a interessada pode acessar o site do Sebrae (sebrae.com.br) ou se dirigir até uma das agências de atendimento localizadas em Palmas, Paraíso, Porto Nacional, Gurupi, Araguaína, Colinas, Araguatins e Dianópolis.

 

Violência Doméstica no Tocantins

A 10ª Pesquisa Nacional de Violência contra a Mulher, feita pelo Instituto DataSenado em parceria com o Observatório da Mulher contra a Violência (OMV), divulgada em  novembro de 2023, aponta que 30% das mulheres do país já sofreram algum tipo de violência doméstica ou familiar provocada por um homem.

 

Dentre elas, 76% sofreram violência física, índice que varia de acordo com a renda. Enquanto 64% das mulheres que sofreram violência doméstica e que recebem mais de seis salários mínimos declaram ter sofrido violência física, esse índice chega a 79% entre as vítimas com renda de até dois salários mínimos.

 

O levantamento nacional ainda mostra que 68% das brasileiras têm uma amiga, familiar ou conhecida que já sofreu violência doméstica e esse índice é ainda maior entre as tocantinenses (75%). No Tocantins, conforme a pesquisa, os tipos de violência mais recorrentes são a física (91%), a psicológica (82%) e a moral (78%).

 

“Com base na minha experiência como delegada da Mulher,  percebo que a maioria das mulheres continuam no ciclo de violência por haver dependência financeira ou emocional, e a forma de nós vencermos essas dependências, em especial a financeira, é empoderarmos socialmente a mulher, dando a ela conhecimento, formas dela poder ter o seu ganho, para que não dependa do agressor. Uma mulher quando consegue trabalhar e ter seu sustento e de seus filhos, ela não suporta uma violência doméstica. Fica mais fácil pra ela quebrar esse ciclo”, explica a delegada da Delegacia da Mulher de Araguaína, Sarah Lilian. 

 

A delegada destaca ainda que qualquer tipo de violência contra a mulher deve ser denunciada. Essa comunicação pode ser feita nas Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAM), em qualquer delegacia de polícia, pelo Disque 190, Disque 180 ou por meio do aplicativo Salve Mulher. 

Comentários (0)