Projeto Atito: algumas considerações sobre o atlas toponímico de origem indígena do Tocantins

A professora Karylleila dos Santos Andrade, graduada em Letras pela Universidade do Tocantins UNITINS, mestre e doutora em Lingüística pela Universidade de São Paulo, discorre em seu artigo acerca dos "Estudos dos nomes de origem indígena do estado d...

Este estudo faz parte do trabalho apresentado para obtenção do título de doutora em Lingüística, área de concentração Semiótica e Lingüística Geral, orientado pela professora Maria Vicentina de Paula do Amaral Dick da Universidade de São Paulo. Intenciona-se, sob a ótica da etno-toponímia, tecer algumas considerações a respeito dos topônimos de origem indígena do estado do Tocantins.

Faz-se necessário esclarecer que o meu interesse na exposição deste material é socializar parte do resultado do ATITO – Atlas Toponímico de Origem Indígena do Estado do Tocantins com pesquisadores, mas principalmente com a comunidade que faz uso diário da linguagem, vivenciando-a na prática, criando nomes a partir da cosmovisão, cruzando fios para formar um tecido toponímico.

A idéia é sair dos muros da academia tradicional, que concentra grande parte dos esforços teórico-metodológicos da pesquisa apenas para o deleite de uma minoria, como também fugir de uma linguagem muito técnica-especializada, decodificada e apreendida por poucos. Provocar no interlocutor um diálogo capaz de atiçar o desejo de conhecer a etimologia dos nomes de origem indígena de rios, córregos, ribeirões, serras, vilas, municípios do estado do Tocantins, entrelaçados por fios marcados pela intencionalidade, crenças, valores e pela motivação do denominador em escolher entre um nome e outro para nomear determinado elemento de natureza física e antropocultural.

Os resultados, obtidos durante a análise dos dados do ATITO poderão servir de subsídios para a produção do Atlas Toponímico do Brasil – ATB, objeto maior do estudo toponímico no país.

Todo trabalho toponímico constitui um caminho possível para o conhecimento do modus vivendi e da cosmovisão das comunidades lingüísticas que ocupam ou ocuparam um deteminado espaço. Nesse momento, são exteriorizados e evidenciados aspectos sociais, religiosos, antropoculturais, organização política e lingüística de um determinado grupo.

 

1. A motivação toponímica descrita nas cartas topográficas do Tocantins

O signo toponímico é motivado, sobretudo, pelas características físicas do local ou pelas impressões, crenças e sentimentos do denominador. Além de diferir dos demais signos no que se refere à motivação, tem particularidade especifica quanto à função. O signo lingüístico se reserva à arbitrariedade, enquanto o signo toponímico à motivação. O que os diferencia é a função significativa quando a toponímia os transforma em seu objeto de estudo.

O duplo aspecto da motivação toponímica é revelado, no primeiro momento, pela intencionalidade do falante e, em seguida, pela origem semântica da denominação. Esses dois aspectos fazem parte da sistematização da taxionomia toponímica proposta por Dick: física e antropocultural. A sistematização da taxionomia é justificada por uma relação icônica1 e simbólica2 de sua significância. Os topônimos apresentariam na função denominativa a existência de um elo entre as expressões onomásticas e os seus denotados. “O signo lingüístico em função toponímica representaria uma projeção aproximativa do real. (DICK, 1990, p. 39). Ex.: Muricilândia (AH TO), Itacajá, (AH TO), Babaçulândia (AH TO).

A motivação para quase todos os 1.350 topônimos, identificados e descritos nas cartas topográficas do Tocantins, resultado da investigação, foi a língua tupi. Sampaio (1987, p. 54) afirma que

a maior parte dos nomes tupis que se encontram na geografia brasílica não foi dada pelo gentio bárbaro, ou pelo selvagem não influenciado pela civilização do branco invasor, mas sim pelas populações que se seguiram à colonização, pelos nascidos no país, quer de procedência européia pura, quer mestiça, populações a quem coube o encargo de alargar a conquista do território, especialmente do sertão do Brasil, tendo como propósito a descoberta de ouro nos sertões.

O autor acrescenta, ainda, que é essa gente que os cronistas afirmam que todos ou quase todos falavam o tupi. As bandeiras, que percorreram a região da Província de Goiás, quase só falavam essa língua. No percurso de suas expedições, nomeavam com topônimos tupi os lugares, rios, córregos, ribeirões, serras, morros, cachoeiras e outros elementos formadores da natureza física e antropocultural do ambiente, evidenciando e firmando suas marcas de colonizadores e “desbravadores” do sertão do país. “Recebiam, então um nome tupi as regiões que iam se descobrindo e o conservavam pelo tempo adiante, ainda que nela jamais tivesse habitado uma tribo da raça Tupi” (SAMPAIO, 1987, p. 71).

Os bandeirantes retratavam o espaço geográfico de um ponto de visto imediato e direto, facilmente denotado pelo observador. Utilizavam, quase sempre, para a denominação dos acidentes físicos e antropoculturais as qualidades de modo objetivo (forma topográfica e geomorfológica, cor, tamanho, localização geográfica) ou subjetivo (elementos psíquicos, culturais e outros), optando por aspectos conferidos ao lugar pelo denominador. A intenção era consolidar e assegurar suas presenças, ou, ainda, demarcar o território, naquela região tão inóspita, na época das entradas e bandeiras na Província de Goiás: o objetivo inicial dessas expedições no interior do país era o apresamento de índios. Ao fracassar esse propósito, partiram para a descoberta de ouro e metais preciosos nas Províncias.

Ao relacionar a toponímia descrita pelos viajantes naturalistas no século XIX e o resultado da investigação do ATITO, identifica-se que alguns topônimos indígenas podem ser interpretados como verdadeiros fósseis lingüísticos (ara-, tucantin-, ita-).

Dick (1990, p. 20-21) afirma que a cristalização semântica dos topônimos, isto é, sua persistência como signos geográficos, mesmo quando seus elementos componentes deixaram de ser facilmente identificados pela comunidade local, adquire considerável relevância na produção e criação de outros topônimos indígenas.

Para assegurar-se da real interpretação do termo onomástico, foi necessário recorrer à etimologia do dado investigado. No caso dos topônimos, identificados no ATITO, relacionando-os com os levantados pelos viajantes estrangeiros, foi importante analisar se os topônimos indígenas de origem Tupi traduziam a característica natural da localidade e/ou ambiente geográfico circundante. Ex.: Itacajá, Araguanã, Araquatins, Tupiratins, Tocantínia.

2. Os viajantes naturalistas estrangeiros na Província de Goiás

Referindo-se, ainda, à composição do mosaico que forma a toponímia indígena do Tocantins, foi necessário realizar um estudo sobre o caminho percorrido pelos viajantes estrangeiros naturalistas na Província de Goiás, no século XIX. A leitura desses viajantes nos possibilitou conhecer a realidade histórico-cultural e econômica da região naquela época; compreender o olhar eurocêntrico dos viajantes, caracterizado, quase sempre, por uma visão singular e não-relativisadora da realidade.

Procedentes de um continente já transformado pelo advento da Revolução Industrial, pelo desenvolvimento do capitalismo e um crescimento demográfico, os viajantes estrangeiros chegavam ao Brasil motivados por fatores econômicos e político-ideológicos expansionistas.

As viagens expedicionárias tinham por objetivo a coleta, a observação e a classificação de espécimes naturais; o recolhimento metódico de dados geomorfológicos, mineralógicos, etnográficos e antropológicos, realizado quase sempre pelo “olhar” etnocêntrico: a visão européia do mundo sobre o outro.

O homem e o ambiente eram vistos como “exóticos e diferentes”. Imbuídos das idéias positivistas da época, os viajantes não relativizavam o que viam. O olhar era sempre a partir de seus próprios paradigmas referenciais: “é que Narciso acha feio o que não é espelho”.

Dos viajantes estrangeiros que realizaram expedições pelo território brasileiro, optou-se, para esse estudo, pelos naturalistas Saint-Hilaire, Pohl, Castelnau e Gardner. Percorreram, de fato, a Província de Goiás, no século XIX, e registraram em suas narrativas e crônicas, a partir de seu modus vivendi, o mundo novo que era “descoberto” por eles. Foram, entretanto, indiferentes ao momento histórico por que passavam os homens de Goiás: uma crise econômica decorrente da quase extinta atividade mineratória, cujo apogeu acontecera no século XVIII.

Legítimos representantes da mentalidade européia da época, os viajantes estrangeiros julgavam a realidade e o ambiente sócio-cultural e econômico de Goiás, manifestando-se indignados com o que consideravam como pobreza, ócio, enfermidades e a falta de progresso. Evitaram estabelecer um diálogo, uma interação com a comunidade: objetivavam, sim, observar e registrar o ambiente, a realidade natural e física circundante, para, posteriormente, comparar com uma outra realidade, a européia.

Torna-se evidente a preocupação dos naturalistas em colocar em prática as idéias filosóficas, econômicas e culturais da época: o positivismo de Comte, a as conseqüências da Revolução Industrial, o capitalismo, o evolucionismo de Darwin, as Teorias Raciais. Financiados pelos governos de alguns países europeus como Alemanha, França, Inglaterra, vislumbravam a possibilidade de sair de sua terra e tornar-se estrangeiro na terra do outro.

As memórias narrativas desses naturalistas, no entanto, nos permitem a reconstrução de histórias regionais, com a da Província de Goiás, mais especificadamente, da região que hoje pertence ao estado do Tocantins, antigo norte de Goiás.

Ainda que suas impressões sejam fortemente marcadas e sustentadas pela mentalidade eurocêntrica, são essas mesmas memórias que revelam o caráter de alteridade que adotaram diante do que viam. Não é à toa que eles demonstraram mais afinidade com a natureza, vista de modo romântica e racional, do que com o homem, com o qual eles não se identificavam. Seus relatos e crônicas sobre a geografia, a botânica, a fauna, a hidrografia e os aspectos antropoculturais da região de Goiás nos possibilitaram a identificação e a descrição da toponímia indígena registrada, por eles, no século XIX.

Vários são os grupos indígenas descritos por esses viajantes, durante suas expedições, na região que hoje se localiza o estado do Tocantins: Kaiapó, Xavante, Crixá, Canoeiro, Capepuxi, Xacriabá, Xerente, Apinajé, Poremecrã, Mecamecrã, Karajá, Javaé, Krahô e outros.

Do século XVIII até os dias de hoje, são poucos os grupos que resistiram aos ataques dos bandeirantes, às doenças, às missões jesuíticas e aos contatos intermitentes com a população não-indigena. Estão localizados, hoje, no estado os seguintes grupos indígenas: os Karajá, divididos em Javaé, Xambioá e os Karajá propriamente ditos, situados na Ilha do Bananal; os Xerente, localizados às margens do rio Tocantins, próximo a capital Palmas; os Apinajé, que vivem em uma área próxima ao município de Tocantinópolis, região do Bico do Papagaio; os Krahô, permanecendo numa área demarcada denominada de Craolândia, mais ao norte do estado e os Krahô-Kanela, localizados no sudoeste do estado, próximo a Ilha do Bananal. No momento, os Krahô-Kanela lutam pelo reconhecimento étnico-cultural e pela demarcação de suas terras.

3. Os rios Araguaia e Tocantins na formação dos topônimos

A toponímia tocantinense não pode ser discutida sem levar em consideração as duas grandes bacias hidrográficas: os rios Araguaia e Tocantins. Às margens do rio Araguaia, temos os municípios de Araguacema, Araguanã e Araguatins; às margens do rio Tocantins, os municípios de São Salvador do Tocantins, Ipueiras, Tocantínea, Tupirama, Bom Jesus do Tocantins, Tupiratins, Itapiratins, Palmeira do Tocantins, Babaçulândia, Tocantinópolis, Itaguatins, São Miguel do Tocantins e São Sebastião do Tocantins.

O topônimo não é algo estranho ou alheio ao contexto ambiental, histório-político e cultural da comunidade. Ao contrario, reflete e refrata, de perto, a própria essência do ser social, caracterizado pela substância de conteúdo.

Os rios Araguaia e Tocantins sugerem, na formação dos topônimos tocantinense, a intencionalidade do denominador, de modo objetivo, a eleger topônimos motivados pelos rios. Revela-se aqui a própria origem semântica da denominação de modo transparente. Ao contrário de alguns topônimos que foram criados ou renomeados após a divisão do estado. Os topônimos registrados, antes de sua divisão, como sendo “Norte” ou “Goiás” foram alterados, por Decreto-Lei, para Tocantins. Ex.: Miracema do Norte para Miracema do Tocantins, Colinas de Goiás para Colinas do Tocantins. A intencionalidade motivacional, nesses exemplos, figura aspectos político-ideológicos. A origem semântica da denominação não está no rio, mas na demarcação de um novo território político-histórico que se formou dentro do estado.

4 . Metodologia e levantamento do corpus do ATITO

O trabalho de campo, levantamento, descrição e análise dos dados, identificados nas 114 cartas topográficas, que abrange a área geográfica do Tocantins, teve como objetivo consubstanciar o Atlas no que se refere aos aspectos teórico-metodológicos da onomástica-toponímica: taxionomia, formação, etimologia dos topônimos e dados antropoculturais. Isso se justifica pela própria função da onomástica e seu caráter motivacional: intencionalidade que anima o denominador e a semântica da denominação.

Entende-se que só é possível compreender a escolha e o sentido do nome observando nas condições de produção: situações subjetivas ou objetivas que poderão traduzir, de modo opaco ou transparente, o porquê da escolha de determinado nome pelo denominador.

O corpus resultou em cerca de 1350 topônimos de origem indígena, correspondentes as cartas topográficas analisadas. Como critério para a descrição das fichas lexicográfico-toponímicas selecionou-se, dos 139 municípios do estado, os acidentes humanos tocantinenses de origem indígena, perfazendo um total de 71 fichas. Optou-se, também, pela literatura de Theodoro Sampaio para a análise etimológica dos topônimos. Autor considerado, no meio acadêmico, como um pesquisador renomado, estudioso pertinaz da gramática e dos estudos etimológicos da língua tupi.

A análise do corpus aponta que os topônimos de natureza física, fitotopônimos e zootopônimos, são os mais presentes na cartografia tocantinense de origem indígena. A partir do plano onomasiológico, córregos, fazendas, rios, ribeirões, morros, lagos, lagoas e outros acidentes vão sendo nomeados. Em parte, esses signos, em função onomástico-toponímica, representam, muitas das vezes, uma projeção aproximativa da realidade geomorfológica e antropo-cultural do ambiente, tornando evidente a natureza semântica de seu significado.

Ex.: Babaçulândia (AH TO), Muricilândia (AH TO), Itacajá (AH TO) e Araguatins (AH TO).

Dos 60 municípios existentes antes da divisão do estado, 15 eram nomeados com topônimos indígenas (Araguatins, Araguacema, Arapoema, Babaçulândia, Dueré, Goiatins, Gauaraí, Itacajá, Itaporã, Juarina, Paranã, Pium, Tocantinópolis, Tocantínea, Xambioá).

O estado possui, atualmente, 139 municípios. Desse total, 71 (setenta e um) são topônimos de origem indígena, que foram descritos em fichas lexicográfico-toponímicas. A formação desses topônimos se dá por:

Elemento especifico simples: Ex.: Tocantínia (AH TO), Babaçulândia (AH TO), perfazendo um total de 7 (sete) topônimos;

Elemento específico composto: Ex.: Araguaçu (AH TO) e Itacajá (AH TO), contabilizando 7 (sete) topônimos;

Elemento especifico híbrido:Ex.: Paraíso do Tocantins (AH TO), Formoso do Araguaia (AH TO), Araguatins (AH, TO), Araguaína (AH TO), totalizando um número considerável de 57 topônimos.

Os aspectos analisados nas fichas são característicos do estudo onomástico-toponímico: localização geográfica, etimologia, dados históricos, informações enciclopédicas, contexto situacional (informações que não contemplam no histórico oficial, sendo resultado da tradição oral), fontes de consultas diversas (autores, internet, dicionários).

Considerações finais

A discussão referente à toponímia indígena tocantinense não se esgosta nos resultados obtidos pelo ATITO. Há que se considerar outros objetos de estudo: o estudo toponímico e a literatura dos viajantes estrangeiros e brasileiros na Província de Goiás, nos séculos XVIII e XIX; a influência dos rios Araguaia e Tocantins na produção dos topônimos tocantinenses, observando os aspectos hidrográficos, antropoculturais, fauna e flora da região; a contribuição da rodovia Belém-Brasília ou BR 153 na criação de novos municípios; estudo sobre a toponímia dos grupos indígenas que vivem, hoje, no estado (Karajá, Apinajé, Krahô, Krahô-Kanela e os Xerente); contribuição dos resultados do ATITO na produção de material didático-pedagógico para as escolas indígenas. Esses são alguns dos objetos de investigação que podem contribuir para a elaboração e produção do ATB – Atlas Toponímico do Brasil.

Comentários (0)