Primavera nos dentes

Confira o novo artigo no "Em Debate" assinado pelo professor Adriano Castorino no qual ele traz à reflexão a situação atual da democracia brasileira após as Eleições Gerais de 2018.

Adriano Castorino é técnico em assuntos educacionais, professor e doutorando
Descrição: Adriano Castorino é técnico em assuntos educacionais, professor e doutorando Crédito: Arquivo Pessoal

A música PRIMAVERA NOS DENTES do grupo Secos e Molhados traz para mim uma espécie de vibração, de entusiasmo. Quando escutava, ainda criança, essa música nos discos de vinil de minha avó eu jamais poderia imaginar que a alegoria ali projetada seria tão atual. A primavera do nosso tempo presente é de poucas flores, nenhum futuro. Acabamos de sair de uma eleição em que os vencedores, eleitos todos pela via democrática, bradam justamente o discurso antidemocrático.

 

A ambiguidade desse nosso tempo é tanta que parte da imprensa que sempre esteve sob a mesa das oligarquias se alimentando das migalhas e fazendo adjetivos em seus jornais hoje é barrada pelo presidente eleito. A Folha de São Paulo é um desses grupos de mídia que mais se postou em favor destas oligarquias e que agora, paradoxalmente, vai sofrer a ira do grupo que fora eleito.

 

Há tantas possibilidades de entender o que se passa agora com a jovem democracia brasileira, mas queria me concentrar num detalhe, apenas: a estrutura de poder. Só para lembrar, trago aqui o exemplo de Canudos, uma guerra levada a termo pelo Estado brasileiro contra sertanejos desvalidos. Guardadas as proporções, é o que o Exército faz hoje nas favelas do Rio de Janeiro. A estrutura de poder é autoritária.

 

O maior desafio da democracia brasileira é justamente aquilo que ela deveria mais combater: a imensa desigualdade econômica e social. A desconstrução dos ideais de poder popular, de alguma forma levados ao debate pela frente política da qual o Partido dos Trabalhadores era a força maior, representa justamente o imenso desafio para a democracia brasileira. Só se combate o autoritarismo com diversidade.

 

A legitimação das urnas é apenas um dos pilares da democracia, há vários outros, dentre os quais a diversidade de programas dos partidos, a diversidade de representantes nas casas legislativas, imprensa livre. Há uma cegueira em achar que democracia é feita com sufrágio, democracia é um caminho que começa antes do voto. O candidato eleito jamais poderia ser derrotado, se o fosse, como ele próprio o disse, não reconheceria o resultado das urnas, porque alegaria fraudes. Assim, só seria legítima a sua vitória. Se fosse um jogo de futebol, só ele poderia sagrar-se vencedor.

 

Por isso, a vitória nesta eleição é a um só tempo uma imensa força da vontade das pessoas, de um lado, e uma imensa sabotagem, de outro. Na aparência foi muito bonito ver como as pessoas se engajaram na eleição de um candidato cujo partido tinha míseros segundos de campanha no rádio e televisão, sem contar a ausência de recursos do fundo partidário. Todavia, fora do que é aparente, esta eleição expressa como as oligarquias, agora mais high tech, manobram para que pareçam sempre legítimos, democratas, limpos, populares, macios.

 

Aqui se fosse uma partida de futebol, o juiz deu um cartão vermelho para artilheiro do time a ser vencido, a torcida em peso elogiou o juiz, e o time que, sem o artilheiro, já estava perdido. No final do campeonato, o time do juiz é ovacionado como vitorioso, e o juiz é convidado para comemoração e logo é alçado ao comando do time vencedor. Essa alegoria, como diz a música que mencionei acima, poderia ser apenas uma metáfora. Mas não é, não foi e nem será apenas uma metáfora.

 

A agenda por trás dessa vitória é tão aviltante que jamais poderia ser implementada se não fosse pelo apoio das pessoas, todavia, parte das pessoas não votou nela, votou apenas contra as políticas sociais levadas ao debate pelo Partido dos Trabalhadores. No campeonato das eleições, o time do PT foi meticulosamente desconstruído, parte de suas políticas foi demonizada. Assim, o eleitorado foi levado a crer que o mal era o PT. O mal tem sempre de ser combatido, pregava o candidato vencedor, com o apoio do juiz da partida, que garantia a capa de legalidade para o cartão vermelho aplicado ao concorrente.

 

Parte do eleitorado que votou no chapa vencedora é beneficiária das políticas dos governos do Partido dos Trabalhadores. Mas a desconstrução foi total que isso não importa mais. Passaram a amar e a cultuar uma candidatura que vai lhes tirar a aposentadoria, que vai ampliar o desmonte da natureza, que vai governar para a mesa das oligarquias. Como conseguiu fazer isso? Como conseguiu convencer? Fazendo política afirmando que não fazia política. A vitória nesta eleição é o desejo de governar o estado como se não houvesse amanhã.

 

É preciso segurar a primavera nos dentes, se preciso for. Temos de respeitar as urnas, é claro, mas seguir defendendo a democracia, a diversidade. Quem não vacila mesmo derrotado/Quem já perdido nunca desespera/E envolto em tempestade decepado/Entre os dentes, segura a primavera.

 

Adriano Castorino é técnico em assuntos educacionais, professor, doutorando em ciências sociais/antropologia

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