A alma das casas velhas e seus quintais

O cheiro de umidade está presente quando se atravessa o portão de ferro, preso com vergalhões em antigos mancos de madeira. Estes, sustentaram primeiro um portão de duas folhas de madeira, ripas arrumadinhas como se fosse uma porteira moderna, de cidade, que o antecedeu. Quando troquei, não quis me desfazer dos mancos.

 

Um pequeno jardim na frente, com helicônias - falsas bananeiras que só dão flor - e uma moita de águas de alevante que perfumam o ar quando chove. Mudas trazidas de Salvador. Meu jardim, sem grama, lembra aqueles de velhas senhoras, com suas plantas que pouca gente sabe o nome, cultivadas em latas.

 

A diferença é que lá em casa estão no chão, e que conheço todas: do peregum ao jasmineiro. Comecei a plantá-las no tempo que a casa não tinha muro na frente, mas apenas uma tela de arame a separá-la da rua…

 

Sentada numa cadeira de fio, com balanço suave, me peguei refletindo no fim de semana sobre o que me acalma nesta casa velha, de paredes frias, que cheira a filtro guardando água fresca.

 

Não é necessariamente uma construção antiga. Quando comprei, derrubei paredes, troquei janelas, suspendi o telhado na área de fundo, mandei fazer um fogão à lenha e cavar um poço, para ter água pura, que não viesse da rua. Já se vão uns 12 anos, aproximadamente.

 

O musgo que toma conta de calçadas frágeis ao redor da casa, improvisadas à medida que fui arrumando tudo, conta da força da natureza presente ali e que não cede seu espaço ao cimento duro. Aqui e ali, a casca fina de massa cede a uma plantinha que nasce, e irrompe nas quebras que o carro, as bicicletas, ou a correria dos meninos vão fazendo.

 

Diante da imperiosa necessidade de reformá-la mais uma vez - trocar piso, corrigir ranhuras nas paredes, retirar a umidade que faz atacar a rinite no inverno tocantinense - me peguei pensando como fazer para não lhe destruir o encanto. A velha senhora tem sua dignidade, na velhice.

É uma casa com alma, a minha. A alma dos quintais de antigamente, mesmo que eu tenha trocado os dois pés de manga que se debruçavam por cima do telhado quebrando telhas por um barracão onde as crianças espalham seus brinquedos, e onde fazemos festas de aniversários, ou nos reunimos para cantar, dançar ou rezar.

 

Lá onde a lua cheia brilha soberana quando o teto de estrelas fica tão baixo na serra que parece estar ao toque da ponta dos dedos… basta levantar a mão.

 

O espaço-mato, ficou lá. No fundo, ao lado, entre. Pequenos pedaços de chão onde cresce livre o mentrasto e o picão. Onde ainda vinga um pé de hortelã e outro tímido de manjericão.

 

Onde está a cana do brejo, para fazer remédio e banhos de ervas para aliviar as cargas do mundo de fora. Fora daqueles muros e portões, a vida cansa. Quando lá desembarcamos, malas, feira, brinquedos… os pesos se tornam infinitamente menores.

 

A velha senhora nos recebe com suas paredes altas e cheiros. Mesmo que seu fogão a lenha encandeça cada vez menos uma panela de barro cozinhando feijão.

 

Raciocinando sobre a reforma, converso com a casa e sua alma. O que ela permite que se faça sem perder a personalidade?

 

Taquaruçu está repleta de suas casas velhas e quintais cheirando mangas que cobrem o chão quando é época. Casas de adobe, tetos de palha, ou de velhas telhas escurecidas. A minha é só mais uma. Mas pela história que vivo ali nos últimos anos, é para mim, ainda mais especial.

 

Não a trocaria por uma casa nova na cidade, com paredes limpas e assépticas, janelas transparentes de blindex. Esta velha senhora é insubstituível, ainda que venham outras, com seu espírito de modernidade.

 

Ali meu filho chegou com três dias de nascido e minha filha com dois meses e meio de vida. Ali eles correm a fazer sua bagunça: frutas, bolachas e brinquedos pelo quintal.

 

Uma aventura viver a infância em casas que se pode rabiscar as paredes e dormir no chão. Este prazer eles têm e terão. Mesmo que eu pinte suas paredes orgulhosas todos os anos…

 

Quando sai e tranquei o portão para voltar à vida da cidade esta semana, vim com uma tristeza estranha por não poder ficar. Será que estou ficando velha, como a vitrola que ganhei aos 16 e repousa sem uso na estante ao lado de velhos vinis?

 

Será que estou agarrada demais às coisas simples que parecem confortar mais a alma que qualquer sucesso profissional? Não sei.

 

Só sei que vim pensando nas casas velhas e seus quintais. As casas de alma antiga. Como a da minha avó Franca, com pés de jabuticabas onde eu me escondia uma tarde inteira para brincar de índio, lá nos grotões de Goiás.

 

Acho que ao fim das contas ela vai envelhecer comigo.

 

Mesmo que ganhe um piso novo, ou uma reforma na cozinha. Mesmo que eu troque as telhas e abra a vista da frente e do jardim.

 

Minha casa velha e sua alma, que lembra tempos ancestrais, vai permanecer de pé.

 

Com todas as suas memórias e sons impregnados na parede do tempo…

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