A Universidade para além do óbvio

Crédito: Arquivo Pessoal

Estamos começando mais um semestre letivo e novamente irei ministrar aulas para os calouros do curso de Ciências Econômicas da UFT. Para mim, pessoalmente, é uma experiência maravilhosa porque me deparo com homens e mulheres jovens, negros e negras, pobres e de classe média. Assim é a realidade das universidades públicas brasileiras. Isso me faz pensar sobre a universidade em que me formei e as que formaram os meus ex-professores, uma universidade com feições do século XIX apesar de estarmos naquela altura, nas últimas décadas do século XX. E hoje: como estamos?

 


Nos últimos anos, as universidades brasileiras têm enfrentado desafios significativos em várias áreas. Boaventura Santos, em seu influente texto “Da ideia de universidade à universidade de ideias”, aborda temas cruciais para aqueles que compreendem e defendem o papel das universidades públicas. No texto são identificadas as principais crises que essas instituições enfrentam: a crise de hegemonia, a crise de legitimidade e a crise institucional.

 


A crise de hegemonia está associada às contradições exacerbadas nas universidades no pós-Segunda Guerra Mundial, incluindo a tensão entre alta cultura e cultura de massas, bem como entre educação e trabalho, e a relação entre universidade e sociedade. A universidade, anteriormente voltada para a produção da alta cultura, agora precisa se adaptar à cultura de massas, não apenas formando a elite econômica e política, como fazia no passado, mas trabalhadores e cidadãos em geral. O que parece é que a instituição não conseguiu se adaptar à realidade posta, mesmo sendo capaz de se expandir e incluir as pessoas, especialmente, os filhos e filhas dos trabalhadores para cursarem todos os cursos oferecidos. 

 


A crise de legitimidade é vinculada as contradições emergentes da modernidade e reflete uma ampla falta de confiança nas instituições sociais. Esse problema é agravado pela falta de reflexão sobre elementos consolidados, como a colonização do saber e o conhecimento eurocêntrico, além da necessidade de foco na função social da universidade. Paradoxalmente, a universidade pode promover exclusão e desigualdade devido à desconexão entre o que e como se ensina e para quem se ensina.

 


A crise institucional é abrangente e pode ser sintetizada no (des)financiamento das universidades públicas brasileiras, especialmente as federais. Como enfrentar os desafios da perda de hegemonia e legitimidade sem um financiamento adequado? Como incluir filhas e filhos de trabalhadores, populações tradicionais e indígenas sem o suporte necessário para garantir a permanência, o acesso ao conhecimento, o desenvolvimento da pesquisa e a extensão? Como promover a inserção social na ausência de recursos para projetos de extensão universitária? Como fortalecer a pesquisa sem investimentos em laboratórios e em bolsas para pesquisadores, tanto jovens quanto seniores? Como atrair e manter estudantes e como motivar professores e técnicos diante de tantos problemas?

 


Os desafios são múltiplos e complexos, abrangendo não apenas uma universidade específica, mas o sistema como um todo. Contudo, isso não impede a realização de diagnósticos situacionais e o envolvimento da sociedade no debate sobre a universidade em que cada um está inserido. É essencial compreender as razões pelas quais os jovens estão hesitando em ingressar em cursos superiores e por que a universidade pública não exerce mais o mesmo apelo. Historicamente, enfrentam altas taxas de evasão e baixas taxas de formatura, problemas que persistem. Atualmente, a principal dificuldade é a insuficiência de alunos para iniciar turmas em muitos cursos de graduação em universidades brasileiras. Considerando os dois movimentos que compreendem o  fluxo da graduação, a instituição enfrenta um cenário desfavorável, pois a função de ensinar e formar por meio do ensino de graduação parece menos necessária: as salas de aula e os campus estão vazios. Como atrair e manter os jovens na universidade pública? Diante de tantos problemas, essa questão é uma das mais importantes e deve ser central nas discussões dentro e fora do ambiente universitário.

 


É crucial mobilizar esforços para debater questões como a inserção social da universidade, a construção de pontes com movimentos sociais, setores produtivos, o Estado e os políticos. Estabelecer um diálogo franco com os atores sociais e posicionar a universidade como um ator social ativo nos processos decisórios.
Além dessas crises, é necessário considerar outros elementos no debate sobre o futuro da universidade, sem negligenciar as macrotendências e os cenários globais até 2050. Segundo o sociólogo e professor da UnB, Elimar Nascimento, existem sete questões que delineiam a realidade que é cheia de incertezas: as demográficas (com o Brasil apresentando uma população de idosos crescente em relação à de crianças e jovens), geopolítica (que impõe incertezas), crise ambiental, inovação tecnológica (especialmente a inteligência artificial), novas configurações econômicas, política e gestão pública (que exigirão novos designs de governança).

 


Essas e outras questões estão em pauta, e cabe a nós a disposição para discutir a universidade que temos e a que precisamos construir para enfrentar os desafios do século XXI. Ainda não iniciamos a construção da  universidade deste século. Ainda não enfrentamos as grandes agendas postas neste século. A caminhada é longa, mas, precisamos dar os primeiros passos.

 

Ana Lúcia de Medeiros é professora na Universidade Federal do Tocantins

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