Doces presentes da mala de mascate

Da mala surgiu uma caixa de doces, bem embalados em papel manteiga. Ao abrir, se deparou com aquelas delícias que marcaram sua infância. “Belawe”....

- “Eu vou te dar um presente. Trouxe de longe pra você!” – a conversa começou assim naquela manhã de terça-feira na casa de Natália. O pai, herói sem tamanho aos olhos da menina de nove anos abria a mala em cima da cama. Cheia de pacotes. Comerciante. Esta era sua profissão. Saia do interior de Goiás para São Paulo, para fazer compras. Na loja, os clientes de sempre, gente que conhecia de toda uma vida, esperavam pelas novidades. Vendia de tudo. O que mais fascinava Natália eram as capas cinzas de um tecido pesado, imensas. Elas cobriam o cavaleiro em cima do cavalo - explicara o pai. Ah, e também tinha chapéus Panamá. Grandes caixas enfileiradas, em cores diferentes, com aquele cheirinho inconfundível, num material mais resistente, macio, do qual desconhecia o nome. Os homens daquele tempo, com certeza eram mais elegantes.



Da mala surgiu uma caixa de doces, bem embalados em papel manteiga. Ao abrir, se deparou com aquelas delícias que marcaram sua infância. “Belawe”. Até hoje, sempre que visitava um grande centro procurava por eles. Eram feitos em camadas de folhados, com nozes e mel. Um sonho. Desta vez tinha também uma jaqueta jeans, para o frio, e um cachecol. Seus olhos brilharam de novo. Dependurou-se no pescoço do pai, e beijou seu rosto, bem barbeado, cheirando a lavanda e loção pós-barba. Dali saiu correndo para o quintal. Não sem antes passar pela cozinha e deixar o pacote com Ermelinda, a cozinheira. A mão melada de doce, ia lambendo, enquanto percorria o corredor de chão batido até o fundo do quintal da vizinha, onde sua melhor amiga esperava todos os dias para brincar.



Do fogão um cheiro especial exalava pelo ar. Dia da volta do pai, era sempre um motivo de festa. Ele próprio continuaria o ritual de desfazer as malas, com mais presentes para a mulher e para o filho mais novo, a esta altura com sete anos. Abaixo deles tinha o bebê, outra menina, linda, de grandes cabelos lisos - que mais tarde iriam encaracolar. Formavam os três uma família típica. Ele, árabe residente no Brasil, ela professora primária, e os três filhos. O carneiro cozinhando, antes de ir para o forno para assar era o prato do dia, acompanhado de molho feito exclusivamente de tomates, servido com pão sírio.



A rotina dos três se quebrou naquela tarde quando Natália se machucou. Brincava no quintal, debaixo do pé de manga, montando vacas, cavalos e carneiros com palitos e coquinhos que caiam por ali. Foi quando o cachorro do vizinho soltou-se da corda e ameaçou seu pato de estimação. Na tentativa desesperada de salvar o bichinho caiu de mau jeito, e bateu com a testa na tampa da caixa de gordura (coisa comum nos quintais de antigamente). O sangue da filha descendo testa abaixo cegou a visão daquele homem que de longe, parecia duro. Pegando a menina no colo não esperou mais nada. Eram tempos antigos, quando telefone era artigo de luxo, e ainda não tinham um deles em casa. Jamil venceu rapidamente os quatro quarteirões que o separavam da farmácia. 



Era uma construção antiga, com assoalho de madeira e prateleiras de vidro num grande casarão. Tudo ali cheirava a éter. As fórmulas pareciam ser feitas do outro lado da parede que escondia um laboratório. Pelo menos Natália pensava assim. No colo do pai, enquanto o velho farmacêutico de fartos cabelos brancos fazia seu curativo teve a exata noção do que significava segurança. Os braços trêmulos dele, a voz gaguejante, no susto de vê-la correndo perigo lhe dizia muito. Do doce trazido na mala de mascate, àquele momento meio trágico, tivera numa só manhã, duas provas de amor do homem que seria seu exemplo para toda vida. Assim cresceu Natália. Forte e segura, achando que poderia ter tudo que quisesse. Afinal, via o mundo com os olhos de sua casa. Até então, uma casa feliz.

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