Eles querem ser mais ricos que o seu País

Acontece de forma cada vez mais intensa nos últimos dias nas redes sociais uma intensa discussão sobre a falta de médicos no interior do Brasil.

 

Quanto mais longe das grandes metrópoles e do Sul do País, maior a dificuldade para encontrar quem aceite trabalhar em cidades pequenas, aldeias indígenas, comunidades Quilombolas. Isto é fato.

 

A medida do governo federal em condicionar a emissão do diploma de medicina à prestação de serviços por dois anos no SUS pegou de surpresa médicos e estudantes, e provocou a reação que se vê.

 

Outro fato: eles não têm a opinião pública ao seu lado.

 

Resta perguntarem-se: por quê?

 

Não sou dada a generalizações e considero a medicina como uma das profissões mais nobres e necessárias  à sociedade. Não poderia ser diferente, afinal sua matéria elementar é a vida.

 

Mas já está na hora da classe médica como um todo refletir sobre o que acontece com a sua imagem. Será que a percepção que a sociedade tem de que em geral o médico é um profissional que prioriza o lucro à atender o juramento que faz em defesa da vida está tão equivocada assim?

 

Debatendo o assunto desde ontem em minha página do Facebook, pude receber todo tipo de reação e comentário.

 

Um deles: de que o governo deveria obrigar todas as profissões à prestação de serviço de utilidade pública de graça.

 

Primeiro erro: não é de graça. O governo federal remunerará os médicos pelos seus dois anos de trabalho enquanto podem utilizar este tempo para se especializar. Segundo: ofereçam a outros profissionais como engenheiros, advogados, para ficar só nestes, dois anos de “estágio remunerado”para ver o que acontece. O governo federal não teria caixa para atender todos os interessados.

 

Choque de realidade

 

Eu defendo que o Brasil abra as portas para a chegada dos médicos estrangeiros interessados nos postos de trabalho que os brasileiros recusam. Com duas garantias: a de que aprendam o português básico e comprovem nível de conhecimento.

 

Também no Facebook médicos e seus familiares elencaram as razões para não ir ao interior: falta de estrutura e prefeitos que não pagam os salários que combinam.

 

Contraponto: e por falta da estrutura desejada (física ou material) estes brasileiros do interior do País precisam ser condenados a abrir mão do sagrado e constitucional direito à Saúde?

 

E por que parte dos prefeitos e seus municípios quebrados não pagam, ou atrasam, todo o interior deve ser condenado a não ter médicos? Para eles serve a lei, e aí defendo celeridade para que seja aplicada. Quem trabalha, tem que receber.

 

Um divórcio nada interessante

 

O que acontece, de fato, e isso está evidente nas cidades grandes, é o divórcio entre o que grande parte dos médicos jura fazer quando se forma e o que faz quando vai ao mercado. O péssimo atendimento na rede pública (consultas de 5 minutos sem olhar no rosto do paciente), a indisponibilidade durante os plantões, os altos preços das consultas particulares, e a dificuldade de agendar consultas em planos de saúde quanto mais para o interior se vá.

 

Quem é mais picareta: o prefeito que atrasa o pagamento, ou o médico que finge dar plantão enquanto atende no seu consultório ou fica em casa?

 

E o que dizer dos mal formados, por aí praticando a medicina que mata, por despreparo, desatenção ou displicência? Eles são a exceção? Pode ser que sim, mas estão fazendo tanto estrago, que são vistos como a regra. O que mudaria isso? talvez um conselho menos coorporativista que defendesse a prática ética e correta da profissão, e não o profissional, acima de tudo.

 

Lembro-me de uma capa da revista Veja, de dez anos atrás, quando a Veja anda era a Veja, em que o mercantilismo na medicina era exposto até as vísceras. Nela aparecia um médico com uma touca branca e uma máscara, feita de cédulas de reais. Chocante.

 

O que ia nas linhas e entrelinhas daquela matéria é a percepção, ainda hoje forte, de que medicina virou um bom negócio. É tanto que tem atraído quem é vocacionado a ganhar dinheiro e não a salvar vidas. Senão como explicar recusa no atendimento e omissão de socorro quando vidas estão em risco?

 

Volto a dizer: não se deve generalizar. Há milhares de bons médicos, vocacionados e bem pagos pelo Brasil a fora. Mas pagam o preço da má imagem que os outros constroem.

 

Os outros, são os que vão para as ruas empunhando cartazes cheios de erros de português, em que defendem a escolha de morar nos grandes centros, onde não falta a boa vida, as opções de lazer, tudo que o status de ser médico oferece dos shoppings à balada.

 

As obrigações do governo brasileiro no foco

 

Refletindo sobre isso tudo isso chego à conclusão de que há muitos argumentos válidos nesta discussão de lado a lado. O governo brasileiro tem a obrigação de garantir os medicamentos básicos. E de investir na medicina preventiva, que vai evitar a lotação nos hospitais com hipertensos, diabéticos, cardíacos, e os doentes das vias respiratórias. São eles os responsáveis, fora os casos de trauma, por cerca de 80% do fluxo de atendimento.

 

Que venham os estrangeiros, mas que sejam obrigados a falar o mínimo em português, para poder se entender com o paciente. Que façam os testes necessários a comprovar seus conhecimentos. Mas que não sejam os únicos a fazer, e isto não seja usado como impeditivo.

 

E que os médicos brasileiros, os que perderam o rumo no meio do caminho ou se comportam assim desde que começaram caminhem de volta ao verdadeiro sentido da sua profissão.

 

Termino lembrando uma história que ouvi de um militar reformado. Anos atrás ele se lembrava de ter reclamado com seu comandante dos armamentos defasados, coturnos e uniformes inapropriados, ouviu dele que tudo aquilo era necessário. Só não era possível ao Exército aumentar seus gastos naquele momento. Não havia orçamento. “Mas e se estourar uma guerra?”perguntou o militar. “Vamos lutar com as armas que temos”, respondeu.

 

Ele insistiu: “mas por que não podemos defender que o Exército, na função básica de garantir as fronteiras e a segurança, tenha prioridade nos recursos do governo?” E ouviu: “porque o País inteiro sofre com a falta de recursos. E o Exército não pode ser mais rico que o seu País”.

 

O problema de parte dos médicos – parte, não todos – é que sonham e defendem seu direito de viver num País mais rico que o Brasil das pessoas comuns. As que morrem no interior por falta de atendimento médico, encaminhamento, socorro.

 

É preciso urgente mudar essa realidade. A classe médica pode começar revendo o que a afasta da opinião pública. E mudando de atitude, quem sabe consiga tê-la como aliada para lutar pelo que falta.

 

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