Longa 'O Barulho da noite’ é um tapa na cara de quem fecha os olhos

A autora do artigo informa que o texto contém spoilers; assim, se ainda não assistiu ao longo 'O Barulho da noite’ não prossiga a leitura

Crédito: Divulgação

O’Barulho da Noite, primeiro longa tocantinense dirigido por uma mulher e tocantinense, Eva Pereira, levou o Tocantins ao maior festival cinematográfico do Brasil: 51º Festival de Cinema de Gramado, em agosto deste ano. Não levou prêmios, mas foi ovacionado. E nesta terça-feira, 21  de novembro de 2023, ao ver a obra cinematográfica, entendi o motivo.



No longa, Emanuelle Araújo interpreta Sônia, uma mulher que vive em um pequeno sítio afastado da cidade com o marido, Agenor (Marcos Palmeira), e as duas filhas crianças do casal, Maria Luiza (Alícia Santana) e Ritinha (Ana Alice Dias). A vida da família é transformada terrivelmente quando Agenor traz o sobrinho Athayde (Patrick Sampaio) — me perguntei: seria ele mesmo o sobrinho? O estranho foi chamado para morar no sítio temporariamente, enquanto ele parte em viagem de 40 dias para a Festa do Divino, tradicional no Tocantins. 


 

Sônia, cansada da mesma vida, ano após ano, depois de se casar com Agenor, que anualmente fica 40 dias fora de casa por conta dos festejos, se encanta com rapaz estranho. E quando o marido parte, é quando inicia o desenrolar de um horror, repassado pelo telespectador com olhares amedrontados, tristes e opacos das meninas; expressões corporais e olhares lascivos de Athayde e Sônia.


Agenor parte mais uma vez, e é aí que a alegria de contagiante do pai sai de cena, juntamente com a alegria das crianças e entra a dor, solidão, medo e horror, noite após noite, Todos os medos acompanhados pelos barulhos da noite. 

 

E ao final, uma enorme tristeza da mãe e filhas — tão bem retratado por Maria Luiza (Alícia Santana) e Ritinha (Ana Alice Dias) e Sônia (Emanuelle Araújo).

 

O filme é um tapa na cara daqueles que fecham os olhos para uma realidade que perdura há milhares de anos (não me passou despercebido um calendário em uma parede mostrando o ano em que a história se passa: 1988), o abuso sexual infantil. Estamos em 2023 e a realidade continua a mesma. Não mudou muito. 



Eva foi audaciosa, confesso, não teve medo de mostrar em seu filme quantas Marias e Anas sofrem nos rincões do sertão. A pequena Maria Luiza (interpretada brilhantemente por Alicia Santana), que demonstra em todo o seu olhar o amor pelo pai, assim como a dor da traição da mãe, da violação de seu inocente corpo e raiva por sua irmã sofrer mesmo destino.


 

Mas vale lembrar, que o filme, é o retrato da violência que acontece não apenas na zona rural, mas também nas famílias abastadas, nas da favela, das famílias do trabalho, nas famílias do namorado, do amigo. Violência que acontece nos centros de grandes cidades, que não é denunciada, nem pela vítima, por alguém da família dela ou mesmo pelos vizinhos que testemunham.


 

Durante a película você percebe que a dor de Maria Luiza, é a sua também, talvez o seu colega do lado não perceba, mas é, sempre foi e será, é aquele tipo de dor que sempre falo: existem dores que nem o tempo poderá apagar, sejam elas tratadas com psicólogos, psiquiatras e afins. Talvez um tiro dado porque quem passou pelo o que a Maria Luiza sofreu, dado pela própria pessoa em quem a machucou, poderia ter tirado um pouco dessa dor, carregada ao longo dos anos, décadas.

 

Mas não podemos.

 

Entretanto, Eva, que conheço há anos, foi audaciosa, corajosa e mesmo com todas as dificuldades lançou o filme, aquele que incomoda, que leva para as telas dos cinemas um assunto tabu, sempre varrido para debaixo do tapete: a violência sexual infantil.

 

Como disse Eva em uma de suas entrevistas: “apesar de se tratar de um drama, o filme não envereda pelos excessos melodramáticos. Mas sim pelos sentimentos represados no olhar, pela força do que fica preso na garganta e salta aos olhos. A luz de lamparina e os sons noturnos marcam todas as nuances, já que os pontos de viradas se concentram à noite”.

 

Sim, nossa querida cineasta tocantinense, tudo isso remexeu em lembranças esquecidas há mais de 45 anos, meu corpo tremia ao final do filme, e confesso, fechei os olhos, e não sei realmente o que aconteceu nos minutos finais do longa. Meu corpo todo tremia, me controlei, mas a vontade era de urrar de dor por todas as crianças violadas neste mundo. Crianças são anjos e como tal deveriam ser tratadas, como Agenor fazia com as filhas.

 

As lágrimas escorreram por minhas faces, chorei por todas elas, ao pensar, como mães podem ser omissas com seus filhos, que saíram de si mesmas e deixar acontecer, mas aí é que está, não sabemos as dores de Sônia (Emanuelle Araujo) que fica subentendido que também sofreu abuso quando criança.

 

Chorei pelas crianças que sofrem abuso por quem mais está próximo, o parente, e ao denunciar são desacreditas, chamadas de mentirosas, e aquilo vai se acumulando ao longo dos anos, e mesmo com terapia, te acompanhará pelo resto da vida. Quem precisava te defender, não defendeu, assim como Sônia não o fez.

 

‘O Barulho da noite’ mostra ao telespectador uma realidade de forma cortante, dura, sem dissimulação de um horror, que transborda nos olhares das personagens mirins. Uma realidade que acontece a cada segundo em todo o Brasil, em todo mundo.

 

Eu poderia escrever horas e horas sobre o longa de Eva Pereira, esmiuçar cada ponto e cada dor, que cada criança violentada leva ao longo dos anos em sua vida, mas resumirei em apenas: obrigada Eva Pereira, o tiro dado pela pequena personagem, foi o tiro que nunca, nós Marias, demos. Não alivia totalmente, mas fica a sensação de que alguém ainda luta por todas nós.


 

Em tempo, até hoje lembro da Eva falando do 'O Barulho da noite' pela primeira vez, da lamparina e da dor, sempre acompanhei com interesse, mesmo parecendo desprendida do assunto, ouvia com interesse e acompanhava. Entretanto, nunca imaginei que o filme seria tão denso e profundo, que abriria as portas para um debate tão importante.

 

Que não fique apenas nas telas, que saia delas e políticas públicas sejam pensadas em proteção real para quem sofre este tipo de violência, pois o tempo passa, mas as cicatrizes ficam.

 

Talvez algumas crianças profanadas nem tenham medo dos barulhos da noite, mas sim da própria noite que chega. Não dorme e assim prossegue ao longo dos anos, sempre precisando de medicação para dormir, por temer que com a escuridão seu algoz chegue mais uma vez. 



Obrigada Eva Pereira, o filme pode conter gatilhos, mas ajuda a entender muitas coisas.

 

Maria Inez Freitas Oliveira é servidora pública municipal de Palmas

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