Parem de nos matar. E o piano

Há dias que me reencontro com o despudor da morte. Não vou falar de estatísticas. Dói.  É um desabafo e um pedido, apenas. Quero pedir para parar de nos matar. De nos dar um mata-leão. De colocar coisas na nossa bebida. De dançar junto aquela música pela madrugada para depois nos silenciar. Só isso que peço.

 

Já mataram.

 

Falo também do Jeff Machado. O ator que dizem queria um papel na novela. Não deu tempo. A cena era encaixotá-lo depois. Depois de um suco. Depois de estrangulá-lo. É sempre depois. Mas o Jeff era veado, não merecia viver. Todos os veados merecem morrer.

 

Sou bom em argumentos, não em números.

 

Tenho medo dos números, das estatísticas.

 

Parece que estou no meio de uma reportagem, para depois chorar. Eu sempre chorava escondido. Não sei o porquê de tanto ódio. Quero muito terminar esse texto.

 

Queria abraçar a mãe do Jeff, dizer que também sou veado e que o sistema não nos deixa existir. Que há doze anos calaram o amor de minha vida com concreto também. Uma pedra enorme. Que eu tive que reconhecer o corpo no IML. Que minhas pernas faltaram na hora. Que o papel na novela é apenas um papel, bobagem. Bobagem nada.

 

Esses dias eu pedi pra Maria Santíssima, antes de dormir, sonhar com Paulo (Paulo foi o amor de minha vida, o que mataram com concreto, também). Eu sonhei. Tudo que eu peço a Ela, Ela me dá. O diálogo foi o seguinte:

 

- Paulo?!

- Oi

- Saudade de você. Me dá um abraço.

- Vem. Tem que ser rápido...

- Como assim? Tá fazendo o quê?

- Tô no meio de uma aula. Minha coordenadora vai me chamar.

- Aula de quê?...

- De piano...

 

Acordei...

 

Não quero falar de estatísticas. Quero falar de amor.

 

Parem de nos matar.

 

Jeff Machado. 44 anos. Natural de Araranguá (SC).

Gay. Morto.

 

Poderia ser uma aula. De piano.

 

Ramiro Bavier

Jornalista e servidor público

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