O bom e velho jornalismo não deve morrer

Quando eu comecei ainda não havia computadores nas redações. Era a década de 80, eu tinha 16 anos e muitos sonhos na cabeça. Um deles era mudar o mundo. Outro era conhecer o mundo. Para mudar o primeiro, queria dar voz aos miseráveis inspirada em Cazuza e sua balada Blues da Piedade: “agora eu vou cantar pros miseráveis, que vagam pelo mundo derrotados, essas sementes mal plantadas, que já nascem com cara de abortadas”.

 

Para conhecer o mundo que eu antevia nos livros devorados na velha Biblioteca Municipal de Jataí, só viajando. Assim, amante da leitura, da escrita e da aventura, ávida por lutar contra injustiças sociais, fui ser jornalista. Esta era a minha paixão, e achei que podia também ser profissão. Para tanto, coloquei meu pé pela primeira vez numa redação de jornal antes dos 18. Um mês no departamento comercial – que era a vaga disponível - me fez chegar onde eu queria: a redação. Ah, a mágica redação onde tudo acontecia. Onde o fato virava notícia, do crime à política, revelando histórias da vida das pessoas. Gente e mundos novos que eu não conhecia.

 

Na redação da Folha do Sudoeste tive meu primeiro professor: José Renato. Editor e meio dono (sócio) do jornal. Lá aprendi o básico: lead, pirâmide invertida (naquele tempo tinha isso). Foi ali também que aquele rapaz jovem, cheio de sonhos, jornalista dono de jornal, me aguçou o faro, o correr atrás da informação completa, da história não contada por detrás de cada notícia. As velhas Remington não tinham ainda ouvido falar de Bill Gates. De ajudante a repórter, das notas da coluna social, até a subeditoria foram dois anos. O tempo que levei para desistir do curso de Pedagogia e arrumar as malas para tomar o rumo da capital, Goiânia.

 

A trajetória toda me volta à cabeça após ler um artigo, muito bem redigido do overmano Deak, sobre as mudanças na notícia, na formação do jornalista, no avanço que as novas tecnologias estão provocando nos jornalistas e nos jornais. Bah! - como diria um colega jornalista gaúcho, ácido nas críticas - mas naquela época não tinha isso. Para trabalhar em redação de jornal tinha que ter mais que o dom, vocação ou um diploma. Tinha que ter ânimo, faro, saber escrever ou disposição para aprender. Tinha que se submeter a uma carga horária estressante. Mas que nada! Eu era jovem e estava disposta. Em Goiânia, uma vaga no caderno 2 do Diário da Manhã me recebeu depois de um teste disputado com um jornalista quase formado. Ele era estudante em fim de curso, mas eu consegui superá-lo, nos critérios todos que a editora, eterna Cejane di Guimarães exigia. E com ela aprendi mais uma lição: “não escreva coisas descartáveis. Escreva com paixão, dê todas as informações que puder. Faça a pessoa ter gosto pela leitura, a ponto de recortar a matéria e guardar”.

 

Grandes lições as do Diário da Manhã do fim da década de 80 e começo da década de 90. Lá migrei por várias editorias, liderando jovens e nem tão jovens repórteres, formados ou não. Foi lá que me toquei da necessidade de cursar a UFG e fazer jornalismo. Também nesta época fui apresentada, na década da transição, ao bichinho estranho e ágil chamado computador. Ele já estava nas grandes redações. Ele chegava com a promessa de tornar tudo mais fácil (ah, a autocorreção!), e muita gente resistia. Mas, bah! Eu era jovem, tinha o mundo pela frente, e podia fazer qualquer coisa: desde pular muro de hospital, acompanhada pelo meu fiel fotógrafo e escudeiro para flagrar lixo hospitalar em local inadequado, até furar a segurança e entrar pela porta da frente para entrevistar o primeiro caso de AIDS em Goiânia. Bons tempos, e novos professores. Com Batista Custódio, editor-geral do diário, que rasgava laudas e lançava o papel amassado pela redação aprendi o que era notícia, e que tinha que ficar perfeita.

 

Já se vão quase três décadas. Não que eu esteja envelhecendo, sorry! É que comecei cedo. Assim, neste artigo meio autobiográfico, busco entender onde foi que o bom e velho jornalismo, simples e bem feito se perdeu. Nos novos modos de fazer? Acredito que não.

 

Lá, no velho diário em transição, se ouvia muito uma frase: “pensem bem, e investiguem direito antes de publicar uma matéria. Cuidado com o nome e a honra dos outros. Espalhar uma notícia é o mesmo que sair pela cidade despejando um saco de penas de galinha. Depois não há como apanhar todas de volta”. E nós, um grupo de meia dúzia de jovens editores trabalhávamos das 11h da manhã às 11h da noite (naquele tempo tinha isso), buscando a excelência. Assim, aprendi de fotografia até diagramação, para riscar minhas páginas em folhas de papel com paicas e dizer ao Fu Manchú, como era exatamente que eu queria.

 

Furos, manchetes, tragédias se sucederam na minha vida de jornalista enquanto o computador era aperfeiçoado, o velho gravador dava lugar ao pen drive e ao mp3, as belas máquinas fotográficas e os mágicos laboratórios escuros eram sucedidos pelas potentes digitais. Mas aprendi tudo. Com a sede de quem tem tempo, e vontade. Já naquele tempo sabíamos de algumas coisas que nunca mudariam: que não se aprendia a fazer jornalismo nas escolas e que não se aprendia a ter caráter nas redações. Sobre isso ouvi e tive que concordar com mais um editor/ professor, José Sebastião Pinheiro, do Jornal do Tocantins: “caráter não se ensina, nem se aprende. Ou o sujeito nasce com, ou nasce sem”. E um mau caráter numa redação estraga a vida de muita gente.

 

Assim, com a evolução dos tempos e do jeito de fazer comunicação evolui pelos meus empregos, e sonhos que me levaram a outras fronteiras: as que escolhi. Daqui, do centro do país, coração do Brasil, assisto e me integro às novas tecnologias da informação às vezes com saudades do bom e velho jornalismo. Não por romantismo. Faz tempo que descobri que não seria o jornalismo a mudar o mundo. Talvez uma combinação entre educação e informação. Ainda não tenho a fórmula. Só sei que, de volta à universidade, pude perceber que muita coisa mudou, e muita coisa se perdeu na ânsia por dar muita informação em pouco tempo. O bom e velho jornalismo – percebi – resistia. Ele está nas boas e bem levantadas matérias, investigativas ou não. O bom caráter continua fundamental, e a abertura para aprender sempre também, mesmo que os patrões de hoje nas grandes empresas queiram que o jornalista vá além do seu papel. Tudo bem. Vamos nos equipar ainda mais e fazer tudo: filmar, fotografar, e escovar o cabelo em algum canto do mundo, para depois de enviar a notícia via laptop, aparecer com a cara boa na reportagem que vai ao ar. Mas será que isso é jornalismo?

 

Sinceramente, quero manter a capacidade de aprender tudo sempre. Bah! Afinal ainda sou jovem, e o espírito de aventura nunca morre. Anos depois de ter pisado na primeira redação de jornal, sou mais jornalista do que nunca, antenada em tudo que acontece neste século. E independente do rumo para o qual as novas tecnologias nos levarão, acredito, piamente, que o bom e velho jornalismo vá sobreviver. Para, quem sabe, ajudar o mundo a se ver no espelho, e aí talvez querer mudar.

 

Estas notas curtas sobre coisas bizarras, a espetacularização da notícia em blogs ou na TV, vão continuar. Há mercado e demanda para isto. Mas por favor, não me digam que os jornais vão morrer. Que os bons e belos textos do cadernos de cultura vão morrer. Que o espírito jornalístico vai morrer e que vamos todos produzir pequenas mercadorias descartáveis de oito ou 10 linhas. Me recuso a acreditar nisto. Mesmo que para alguns possa parecer jurássica. Que o bom e velho jornalismo sobreviva, e conviva com o novo. Este novo em mutação que tem tanto a aprender.

Comentários (0)